quinta-feira, 18 de março de 2010

Fantasma de uma Rosa

"Promise me, when you see, a white rose you'll think of me.
I love you so, never let go,
I will be your ghost of a rose..."

Blackmore’s Night – Ghost of a Rose

As cândidas mãos seguraram as saias volumosas, puxando-as para que os pés não sentissem o descuido de tropeçar nelas, enquanto corria para o jardim de altas muralhas verdejantes. Os saltos deslizavam na gravilha incómoda, que tanto a irritava com os seus estridentes ruídos, quando as pedrinhas se entrechocavam e lhe conferiam a sensação de desequilíbrio. Ao alcançar a proximidade das acolhedoras sombras, cobriu-se delas, impedindo que o Sol a continuasse a macular com os seus intensos raios do princípio de tarde. Magoava-a, aquele ofensivo brilho do astro que se dizia rei dos céus. Ergueu os olhos de safira, para o azul celeste onde algumas aves esvoaçavam, agraciando a Primavera e o bem-vindo calor que antecipava o Verão. O seu lírico canto enchia-a de uma mensurável melancolia que a desfiava aos poucos, desmanchando as complicadas malhas de que a sua alma era tricotada. Tanta era a vida que subsistia num mero sopro do vento…

E o vento soprou, afagando-lhe os cabelos soltos de uma estranha coloração que tanto a definia. Chamavam-lhe a donzela dos cabelos brancos, a jovem que envelhecera ao nascer, ou que nascera envelhecida. Ninguém tinha a certeza de qual das hipóteses viria a ser a correcta, pois quando nascera para o mundo, toda ela vinha pintada de uma certa tinta vermelha a que chamavam sangue. Nesses vagos instantes, o seu pouco cabelo de recém-nascida fora escarlate, como as pétalas de uma rubra rosa.

Avançou por entre o trilho com pouco mais de um metro de largura, protegida da claridade, enquanto também a brisa passeava com ela, afagando-a com as suas gentis mãos sensíveis, enquanto comunicava numa língua perceptível a poucos. Descalçara-se, deixando os incómodos sapatos para trás e, em seu redor, as plantas estendiam os ramos para si, enquanto o dia obscurecia, as nuvens no céu impedindo que aquele rei luminoso a magoasse. Não sabia ele o significado do verdadeiro calor, o que vivia em si, guardado num coração que simultaneamente amava e odiava tudo o que era vida e morte, decadência pura e beleza impura. Esticou a mão aberta, de dedos finos e delicados que só conheciam a gentileza das pétalas aveludadas e dos livros velhos, do piano antigo na sala de música e dos lençóis onde adormecida sonhava com o acordar da eternidade.

Uma borboleta amarela passou diante de si, na inocente inconsciência que lhe era devida. Quando o seu olhar caiu sobre o efémero insecto, este incendiou-se sem demora, soltando um crepitar como se de um grito se tratasse, num momento em luminosas chamas, e no seguinte em simples cinzas. E a donzela sorriu, ao contemplar aquele fulgor da explosão de vida, a máxima centelha que levava um corpo a passar de um estado para o outro, a transmissão de energia para o ambiente em redor. Não fora a perda de uma vida, fora a união com o redor dominante.

Atrás de si, os braços dos altos arbustos bloquearam a passagem a outro qualquer humano que a quisesse seguir, como sempre faziam, para desespero dos apoquentados jardineiros que julgavam assombrado o jardim do qual tratavam. E era verdade. Ela assombrara aquele jardim, mesmo antes de saber caminhar por si própria, quando a mãe e as amas a levavam num passeio. Aquele espaço surtia um feitiço sobre si que a consolava nos dias de maior alegria, abraçando-a como um amante faria, tão terno. Um ramo aveludado tocou-lhe a face com as suas fragrantes folhas. Dedos quentes de um ser que a amava.

Uma gota de chuva precipitou-se sobre a sua fronte, e a donzela ergueu novamente os olhos para o céu. Cinzentas nuvens preenchiam-no, transportadas até ali pela mão da brisa amena. Ninguém diria que ele fosse capaz de tal, aquele vento que lhe murmurava incrivelmente baixo, mas possuía a força de mover oceanos, balançando as entranhas profundas da água, chamando-a até ao seu abraço e incorporando-a para, muito depois, a guiar até ali, precipitando-a para amenizar a chama que ardia em si. Seguindo aquela gota, outras vieram, cantando alegremente a sua canção líquida, alto, cada vez mais alto, gritando agora ao mundo, para que de longe as pudessem ouvir.

Uma súbita luz rompeu as nuvens, iluminando tudo de um tom branco e cru, enfatizando sombras escondidas, enquanto descobria outras, em recônditos obscuros. Ao sentir aquela luz tocar-lhe, os fios de cabelo retribuíram um reflexo áureo, que de natural lhe atribuíam pouco. Deteve-se por momentos, um pé paralisado, enquanto se erguia da gravilha agora fria de molhada, uma mão apoiada num cómodo ramo retorcido que se proporcionara a tal. À fascinante luz, seguiu-se um brado titânico, proferido pelo Universo, um cumprimento à sua pessoa, vindo do longínquo infinito.

Continua...

(imagem por Majin-sama - White Rose)

5 comentários:

Kath disse...

Está giro!

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Está nada!

Unknown disse...

Li agora a primeira parte e gostei...

Afonso Arribança disse...

"Uma borboleta amarela passou diante de si, na inocente inconsciência que lhe era devida. Quando o seu olhar caiu sobre o efémero insecto, este incendiou-se sem demora, soltando um crepitar como se de um grito se tratasse, num momento em luminosas chamas, e no seguinte em simples cinzas."

Todo o texto esta bom, mas esta parte está tao bonita.

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Muito obrigada, Afonso ^^
Ainda bem que gostaste ^^