quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Romeu Insano


(Os candeeiros fracos de rua iluminam o corpo esguio e desnutrido, vestido de farrapos, enquanto a neve cai. Ao fundo, as luzes das casas chegam parcamente até Romeu, que olha em volta, apresentando-se confuso e desnorteado)

Romeu: Onde… onde estou? Que lugar inóspito e despido de vida é este, onde observo a sentença ditada pelo meu crime?

(Faz uma pausa e dá dois passos incertos em frente, perscrutando o público não iluminado)

Romeu: Deuses, digam-me que horror fiz eu, senão amar o sangue que no seu corpo corria e lhe dava a existência doce de que me alimentei? Onde a esconderam? Onde enclausuraram a vida que era minha? Onde estás, Julieta?

(Os olhos iluminam-se de reconhecimento, de súbito, e abre os braços para receber algo. Fecha-os logo a seguir, abraçando o seu próprio corpo)

Romeu: Oh! Estás aqui, amor, minha doce candura terna de Sol vespertino.

(Os lábios beijam o ar apaixonadamente e o abraço desfaz-se. Romeu abre os olhos, fitando o público sem o ver)

Romeu: Diz-me, Julieta, porque te escondeste de mim, deixando-me esfomeado e sem rosa do coração que me guiasse? Que infame monstro da humanidade te prendeu em suas garras e permitiu que te apartasses do que sofre no meu peito, correndo vales e montanhas do Inferno em busca da tua paz? Oh, Julieta… Não imaginas o que padeci sem os teus beijos de carinho, o teu toque de veludo e o teu perfume fresco de Lírio. Não sabes como foram álgidas as minhas noites, aquelas em que implorava à Lua para que deixasse de brincar comigo e devolvesse o ente em que estava contido o meu coração. Pois o és, admito-o. Viver sem ti é como se perdesse aquilo que me mantém são, a alma que faz de mim pessoa. Quantas não foram as barbáries por mim perpetradas, na busca pelo destino em que te findaste? Mas eis que surges perante mim, no teu vestido níveo, noiva minha! Caída dos céus, por mim! Mas…

(Sem aviso, os olhos de Romeu abrem-se desmedidamente, conferindo-lhe uma expressão algo horrorizada)

Romeu: Não… Não! Não te ides, imploro-te! Não me deixes outra vez que esta dor esquarteja a minha carne em decomposição. Sim, ouves bem! Sem ti o meu corpo apodrece e é consumido por esses vis bichinhos que tudo corroem. Por favor, fica!

(Nisto, Romeu lança-se do palco de braços abertos, querendo apanhar o ar e estatela-se no chão com um grito de dor. Depois, escuta-se um choro miudinho de tristeza. E somente este choro chega até ao público, durante cerca de um minuto. Por fim, Romeu levanta-se, os olhos vermelhos e a cara lavada em lágrimas. Com uma mão apoia-se no palco e sobe para cima dele. Porém, desequilibra-se e cai prostrado, a cara encoberta entre os braços)

Romeu: Porquê, meus deuses… porquê? Porque me tiram tudo aquilo que amo e me torturam com a solidão…

(Ajoelha-se, voltado para o palco. A sua expressão é agora determinada e grita)

Romeu: Porquê, maldição que me alvejaste de morte?! Pois se é morte que quereis, é morte que tereis. Regarei sangue com sangue e banhar-vos-ei nele!

(As mãos palpam os bolsos fundos, perscrutando-os, e instantes depois Romeu retira deles um punhal desembainhado. Uma luz incide sobre a lâmina, a qual é mostrada ao público)

Romeu: Vede, deuses, vede o meu troféu sobre vós! Causastes o meu flagelo e eu terminá-lo-ei. Nada me impedirá de me unir a Julieta, nem vós nem os demónios da alma… ninguém!

(Encosta o punhal ao peito, enquanto as lágrimas se vertem e os lábios estremecem. Volta a gritar)

Romeu: Perecerei e serei livre! Livre para amar! Livre para abraçar Julieta de encontro a mim e sentir o seu sangue no meu! E vós não mais o podereis impedir, malditos deuses!

(O punhal desvia-se um pouco do seu alvo, para ganhar balanço e penetrar melhor na carne)

Voz que vem de algures: Cala-te, idiota! Quero dormir!

(Uma pedra voa pelo ar, acertando-lhe na cabeça. Romeu cai desfalecido, enquanto o seu sangue se verte pelo palco)

(Para o Colinas de Palavras)

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