quinta-feira, 25 de abril de 2013

Da Cecile, com Amor...


“Lá fora, a noite caía tempestuosa. A chuva fustigava as altas janelas e os belos vitrais feitos em honra do rei e da rainha do Submundo abanavam sob o impacto do vento. Jihm soltou um suspiro cansado e passou uma mão pelos olhos que teimavam em fechar-se, como se as pálpebras pesassem uma tonelada. Já era tarde, e a sua família esperava-o. Nenhum deles previra que se demorasse muito mais que o normal, no seu próprio dia de aniversário. Mas trabalho era trabalho.

Passou a penugem da pena pelo queixo, enquanto observava o inventário de livros que a bibliotecária mestre o deixara a preencher. Não podia sair dali enquanto não o terminasse. Contudo, ainda faltavam tantas páginas! Soltou um gemido angustiado que fez a chama da candeia estremecer em solidariedade para com ele. Por fim, voltou a pegar nos pergaminhos e levantou-se da cadeira estofada e demasiado confortável, para ir passar revista aos livros.

A lareira de fogo mágico crepitava, lançando vagas de calor que muitos leitores nocturnos apreciavam, principalmente em dias como aquele. Além disso, já ouvira rumores de que alguns dos príncipes gostavam daquele espaço para dar asas a outros divertimentos. Felizmente nunca testemunhara mais do que olhares comprometidos, e um ou outro beijo.

Quando alcançou o lado norte da biblioteca real, levantou o braço e iluminou uma prateleira ao nível do seu peito, onde repousavam três dos quatro exemplares que ele próprio escrevera. Sorriu com um orgulho de pai e passou revista à restante estante.

As luzes oscilavam, criando sombras que o perseguiam ao longo dos corredores formados pelas gigantescas estantes. Rastejavam ao longo do chão, envolvendo-se com a própria silhueta do bibliotecário, e tentavam saltar-lhe em cima a partir das prateleiras mais altas. Num instante súbito quase todas se extinguiram, quando um descomunal relâmpado iluminou a biblioteca. Jihm estremeceu e desviou o olhar para as janelas, a tempo de ver um vulto cortar a luz, antes de desaparecer com o extinguir da luz. O ribombar do trovão não se fez esperar, parecendo fazer oscilar os alicerces do palácio.

 – Pelos deuses – sussurrou, recuando um passo. – O que foi aquilo?

“Aquilo?”

A pergunta ecoou em redor, por mais tempo do que o suposto, impedindo-se de ser absorvida pelos livros. A voz que a pronunciara era suave, quase melíflua, e, ao mesmo tempo, terrivelmente assustadora. Os cabelos da nuca do rapaz eriçaram-se, mas foi só quando o fogo mágico da lareira se apagou que Jihm percebeu que deveria ter fugido antes, pois agora já não teria tempo.

De um só ímpeto, a escuridão encurralou-o dentro de um pequeno círculo. A sua protecção era apenas concedida pela chama que tremeluzia dentro da candeia, por isso ergueu-a acima da cabeça, tentando aumentar o raio que o separava da negrura. Contudo, a sua posição tinha um ponto fraco do qual o seu atacante se aproveitou.

Usando a zona de sombra no topo da candeia, um tentáculo de escuridão serpenteou esquivamente até à sua mão. O toque veio com a dor fina de uma picada, que o fez soltar a candeia.

O estilhaçar não se equiparou ao barulho do trovão, contudo foi como se o seu coração parasse de bater. A chama durou apenas um instante de segundo, antes de as sombras se abaterem sobre Jihm, tragando-o.”

Piscou os olhos e levantou o olhar para a namorada, que o mirava com uma expectativa de criança perante uma suposta obra-prima. O cabelo cor de fogo e as sardas que lhe pintalgavam as bochechas realçavam-se sob a luz das velas, e os olhos verdes brilhavam.

– Acaba assim?

– É só o princípio. Para o ano dou-te mais um bocadinho da história. Quando tiveres aí uns 300 anos terás o fim – disse ela, com um sorriso amplo. – Mas não vais morrer, é tudo o que te posso adiantar.

Jihm não conseguiu evitar rir-se. Pousou as páginas escritas numa letra gorducha e certinha, mostrando o quão ponderadas tinham sido as palavras. E, pela falta de erros ortográficos ou texto riscado, ele supunha que Cecile escrevera e revira enésimas vezes aquele pequeno pedaço de história.

– A partir de agora, vou esperar ansiosamente pelo meu aniversário, só para saber as tortuosidades que me vais fazer – notou, esticando uma mão para o rosto macio dela. – Obrigado, meu amor.

Cecile corou um pouco e chegou-se mais para ele, roubando-lhe um beijo terno.

– Parabéns, meu escritor – sussurrou, deixando o nariz roçar-se no dele.


Lantern 02, by Snowfake

Nota:

Cecile © me

Ambas as personagens pertencem ao RPG  "Terra Negra".