“Lá fora, a noite caía
tempestuosa. A chuva fustigava as altas janelas e os belos vitrais feitos em
honra do rei e da rainha do Submundo abanavam sob o impacto do vento. Jihm
soltou um suspiro cansado e passou uma mão pelos olhos que teimavam em
fechar-se, como se as pálpebras pesassem uma tonelada. Já era tarde, e a sua
família esperava-o. Nenhum deles previra que se demorasse muito mais que o
normal, no seu próprio dia de aniversário. Mas trabalho era trabalho.
Passou a penugem da pena pelo
queixo, enquanto observava o inventário de livros que a bibliotecária mestre o
deixara a preencher. Não podia sair dali enquanto não o terminasse. Contudo,
ainda faltavam tantas páginas! Soltou um gemido angustiado que fez a chama da
candeia estremecer em solidariedade para com ele. Por fim, voltou a pegar nos
pergaminhos e levantou-se da cadeira estofada e demasiado confortável, para ir
passar revista aos livros.
A lareira de fogo mágico
crepitava, lançando vagas de calor que muitos leitores nocturnos apreciavam,
principalmente em dias como aquele. Além disso, já ouvira rumores de que alguns
dos príncipes gostavam daquele espaço para dar asas a outros divertimentos.
Felizmente nunca testemunhara mais do que olhares comprometidos, e um ou outro
beijo.
Quando alcançou o lado norte da
biblioteca real, levantou o braço e iluminou uma prateleira ao nível do seu
peito, onde repousavam três dos quatro exemplares que ele próprio escrevera.
Sorriu com um orgulho de pai e passou revista à restante estante.
As luzes oscilavam, criando
sombras que o perseguiam ao longo dos corredores formados pelas gigantescas
estantes. Rastejavam ao longo do chão, envolvendo-se com a própria silhueta do
bibliotecário, e tentavam saltar-lhe em cima a partir das prateleiras mais
altas. Num instante súbito quase todas se extinguiram, quando um descomunal relâmpado
iluminou a biblioteca. Jihm estremeceu e desviou o olhar para as janelas, a
tempo de ver um vulto cortar a luz, antes de desaparecer com o extinguir da
luz. O ribombar do trovão não se fez esperar, parecendo fazer oscilar os
alicerces do palácio.
– Pelos deuses – sussurrou, recuando um passo.
– O que foi aquilo?
“Aquilo?”
A pergunta ecoou em redor, por
mais tempo do que o suposto, impedindo-se de ser absorvida pelos livros. A voz
que a pronunciara era suave, quase melíflua, e, ao mesmo tempo, terrivelmente
assustadora. Os cabelos da nuca do rapaz eriçaram-se, mas foi só quando o fogo
mágico da lareira se apagou que Jihm percebeu que deveria ter fugido antes,
pois agora já não teria tempo.
De um só ímpeto, a escuridão
encurralou-o dentro de um pequeno círculo. A sua protecção era apenas concedida
pela chama que tremeluzia dentro da candeia, por isso ergueu-a acima da cabeça,
tentando aumentar o raio que o separava da negrura. Contudo, a sua posição
tinha um ponto fraco do qual o seu atacante se aproveitou.
Usando a zona de sombra no topo
da candeia, um tentáculo de escuridão serpenteou esquivamente até à sua mão. O
toque veio com a dor fina de uma picada, que o fez soltar a candeia.
O estilhaçar não se equiparou ao
barulho do trovão, contudo foi como se o seu coração parasse de bater. A chama
durou apenas um instante de segundo, antes de as sombras se abaterem sobre
Jihm, tragando-o.”
Piscou os olhos e levantou o
olhar para a namorada, que o mirava com uma expectativa de criança perante uma
suposta obra-prima. O cabelo cor de fogo e as sardas que lhe pintalgavam as
bochechas realçavam-se sob a luz das velas, e os olhos verdes brilhavam.
– Acaba assim?
– É só o princípio. Para o ano
dou-te mais um bocadinho da história. Quando tiveres aí uns 300 anos terás o
fim – disse ela, com um sorriso amplo. – Mas não vais morrer, é tudo o que te
posso adiantar.
Jihm não conseguiu evitar rir-se.
Pousou as páginas escritas numa letra gorducha e certinha, mostrando o quão
ponderadas tinham sido as palavras. E, pela falta de erros ortográficos ou texto
riscado, ele supunha que Cecile escrevera e revira enésimas vezes aquele
pequeno pedaço de história.
– A partir de agora, vou esperar
ansiosamente pelo meu aniversário, só para saber as tortuosidades que me vais
fazer – notou, esticando uma mão para o rosto macio dela. – Obrigado, meu amor.
Cecile corou um pouco e chegou-se
mais para ele, roubando-lhe um beijo terno.
– Parabéns, meu escritor –
sussurrou, deixando o nariz roçar-se no dele.
Lantern 02, by Snowfake |
Nota:
Jihm © Morgana du Lac (Ana Santo)
Cecile © me
Ambas as personagens pertencem ao RPG "Terra Negra".
2 comentários:
Muito bom!
Muito obrigada, Guiomar :D
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