O Sol
escondia-se no horizonte, frente a frente consigo. A visão do pôr-do-sol era
igualmente bela e melancólica, e enchia o espírito de suspiros contidos.
Sentada no
jardim do palácio, Divyn aguardava o seu cavaleiro andante. Lançou um olhar ao
bosque. Urië chegava sempre por entre as árvores, vindo de um algures que ela
ainda não descobrira onde era, apesar de já ter vagueado por ali, em busca de
um portal, uma passagem secreta, um túnel… qualquer coisa. Soltou um dos suspiros
que o pôr-do-sol fomentara.
Quando do
astro rei sobrava somente aquele clarão alaranjado que tinge os céus, a jovem
elfo ergueu-se e sacudiu as calças. Talvez ele não pudesse vir, talvez não
soubesse sequer que dia era aquele. Regressou então para o interior do palácio,
onde a família a esperava para uma pequena festa simbólica. Quando os abraços,
os beijos e as felicitações terminaram, Divyn subiu para o quarto, de coração
pesado. Ele não viera mesmo.
Sentou-se à
beira da cama, mirando as vidraças fechadas através das quais as estrelas a
espreitavam, cintilando segredos. Elas sabiam qualquer coisa, percebia-o no seu
tremeluzir.
A elfo
resmungava para si, quando um relinchar, vindo lá de fora, lhe chamou a
atenção. Ergueu-se de um salto e por um triz não se estatelou, quando o pé
ficou preso no tapete, ao correr para a varanda. Por vezes conseguia ser tão
desastrada quanto a mãe.
Abriu as
vidraças de par em par e debruçou-se no parapeito. Lá em baixo, um bonito
equídeo de pêlo de prata aguardava-a, expectante. O chifre incrustado na fronte
era da cor do marfim ao luar. O unicórnio dobrou ligeiramente uma das patas da
frente e fez-lhe uma vénia respeitosa.
– Estás
atrasado, meu príncipe – notou a jovem. No entanto, a sua má disposição fora
substituída por um bonito sorriso.
“Alguns
contratempos detiveram-me, bela donzela”. A voz dele ecoou-lhe na mente, suave
e contudo firme, revelando uma força que o seu aspecto delicado escondia.
“Posso pedir-te para que desças? Se não puderes, não irei insistir. Deves estar
cansada e a preparares-te para dormir…”
Uma risada
fresca escapou-se-lhe por entre os lábios rosados.
– Tolo! Vou já
descer, não te preocupes – garantiu, já a voltar costas e a correr de regresso
ao quarto. Pegou só num xaile leve que pôs sobre as costas e desceu. Ele já a
esperava junto à entrada do jardim, quando ela passou a porta e se lançou para
ele, abraçando-o pelo pescoço esguio. Acariciou-lhe a crina que parecia seda e
beijou-lhe o pêlo entre os olhos azuis.
Ele recuou um
passo, quando Divyn o largou, e baixou-se um pouco de forma a que a jovem
pudesse trepar-lhe para a garupa.
“Sobe”,
incentivou.
Deixou-se
levar por entre o bosque, até junto de uma velha árvore de tronco encarquilhado
e ramos nus. Pousado nela, um mocho anão observava-os, sem medo. Inclinou um
pouco a cabeça.
Quando o
unicórnio se voltou a baixar, ela desmontou.
– É a partir
daqui que vais para o teu mundo? – perguntou a elfo, curiosa.
"Contigo
sim" disse, aproximando-se da árvore. Depois de a examinar, inclinou a
cabeça, até o corno tocar num nó específico.
Sem aviso, a
madeira gemeu. A casca do tronco estalou, e os ramos debruçaram-se sobre eles, como
terríveis garras de bruxa, que se enterraram na terra. Estavam encurralados.
Divyn chegou-se
mais para ele, assustada. Lembravam duas aves engaioladas.
– Urië –
sussurrou, quando os ramos começaram a reluzir no mesmo tom que o luar.
“É melhor fechares
os olhos” recomendou. “Há quem não goste de assistir à passagem”.
Abanou a
cabeça. Não. Ela queria ver até o mais pequeno pormenor, absorver tudo e
compreender.
A noite
começou a diluir-se, como se fosse uma imagem reflectida num espelho de água.
Por um momento, as estrelas desapareceram, as árvores desvaneceram-se, os sons
apagaram-se. Susteve a respiração, quando o solo lhe raspou nas solas dos
sapatos, mutando a sua consistência.
Aos poucos, um
perfume fresco serpenteou em seu redor, como um feitiço, enquanto o cantar de
água corrente a alcançava. Os ramos retorcidos quebraram-se com o som do pio de
um rouxinol e desfizeram-se em partículas tão pequenas que logo as deixou de
conseguir ver. E a atenção focou-se no novo céu.
Ali também era
noite cerrada. Apesar de as estrelas cintilarem da mesma forma, as constelações
eram outras e o ambiente parecia estranhamente leve, o ar mais puro. Inspirou
fundo.
O toque suave
de uma mão de encontro à sua fê-la baixar o olhar. Constatou de imediato que já
não estavam num bosque, mas sim no topo de uma colina. Lá em baixo, pequenos
cursos de água corriam para destino incerto, rumorejando entre si numa língua
líquida. Muitos pontos brilhantes esvoaçavam um pouco acima das águas e entre a
relva, como se metade das estrelas do céu tivesse caído. E ao longe, para
completar a paisagem digna de ser gravada em tela, erguia-se um belo palácio de
cristal, cujos minaretes reflectiam o luar.
– É tão lindo –
murmurou, quase não conseguindo acreditar. – Trouxeste-me ao paraíso?
Desviou o
olhar para o homem, e não o unicórnio, que estava agora ao seu lado. Uma
estranha beleza reflectia-se do seu cabelo cor de luar; da pele sem rugas, como
que esculpida em mármore; dos olhos cinzentos em forma de amêndoa e
sobrancelhas finas. Parecia um anjo a quem tinham roubado as asas. Sentia-se
pequena ao lado dele, e feia.
"Tola"
os pensamentos dele chegaram até si. Urië era mudo, e o esforço que fazia para
conseguir falar com ela daquela forma martirizava-o. Ele é que era o tolo!
"Hoje não
te vou levar ali" apontou o palácio. "Mas sim ali".
Fê-la dar meia
volta.
Se o espanto
fosse contagioso, tudo em seu redor teria ficado estupefacto. A colina fazia
parte da orla de um bosque de árvores baixas, todas elas da mesma espécie. Porém o mais notável eram as copas espessas, repletas de folhas de prata.
Nota:
Divyn © Morgana Du Lac (Ana Santo)
Urië © me
Ambas as personagens pertencem ao RPG "Terra Negra"
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