segunda-feira, 27 de julho de 2009

Pluma Escarlate

Parte II

Mal se vira o Sol nascer. Um nevoeiro cerrado cobria a embarcação e tudo o que a rodeava. Não se via mais que um braço à frente da face. A única coisa que se ouvia era o casco a cortar as ondas que se abatiam sobre ele. Aquele era um ambiente traiçoeiro que os ludibriava.
- Capitã!
Alexandra olhou para o mastro principal, donde vinha o chamamento, apesar de não ver nada além da densa nébula.
- Sim, senhor Almiro?
- Aproximamo-nos de algo a pouca distância! – Gritou a voz do velhote, do vazio. – Outro navio, parece-me!
A capitã franziu as sobrancelhas. Por entre o nevoeiro não conseguiria descortinar se eram amigos ou inimigos. Não se poderiam arriscar a atacar um barco mercantil. No entanto, seria só mais um para um currículo que outros tinham forjado para eles… e podiam sempre recuar se fosse engano.
- Preparem-se para atacar! – Gritou para a sua tripulação. – Vamos abordar o navio e certificarmo-nos de que não são os homens do Marquês.
- Alexandra, isso é demasiado imprudente. Pode ser qualquer pessoa, pode mesmo ser a guarda do rei! – Alonso agarrou-lhe o braço, impedindo-a de avançar para a amurada.
- Mesmo que seja, conseguimos escapar-lhes uma vez. Podemos muito bem escapar outra. É uma questão de superioridade estratégica.
- E tens alguma estratégia? – A dúvida planava como uma ameaça feroz na voz de Alonso.
- Não, mas se não os atacarmos nós, há a forte probabilidade de serem eles a fazê-lo. E eu não quero cair, não agora que podemos estar tão perto do final.
- Que final? Do nosso final?!
Alexandra puxou o braço da mão de Alonso e afastou-se dele sem lhe responder. Não queria admitir que as suas perguntas a perturbavam.
Depressa os seus inimigos se deram a revelar. Um colosso pareceu materializar-se ao seu lado vindo de outro mundo. Pouco conseguia desvendar naquela semi-cegueira e os rostos dos marinheiros adversários eram-lhe vagos.
Por enquanto também não tinham atacado. Não sabia a razão. Estariam à espera que dessem eles o primeiro passo? Se assim era, assim o fariam.
Não hesitaram. Abordaram o outro navio de imediato e o combate começou. Alexandra ouviu armas a dispararem. Por entre aquele nevoeiro era uma loucura disparar-se uma arma! Podiam acertar na pessoa errada, num companheiro!
Desembainhou a espada afiada, mas a falta do seu brilho por entre a brancura impura do ar deu-lhe um arrepio. Considerava aquilo um muito mau prenúncio. Estariam os mares contra eles?
Ouviu algo a cortar o ar por detrás de si e virou-se rapidamente, erguendo a espada a tempo de se defender. O entrechoque do metal repercutiu-se no ar com hostilidade. Alexandra fitou a face do seu atacante, por sinal sua conhecida.
- Seja bem vinda, Capitã Vasconcelos. Tenho esperado ansiosamente por si – declarou o capitão Henrique com um sorriso sarcástico. – Demorou a chegar, mas mais vale tarde que nunca.
- É um prazer reencontrá-lo, monsieur – disse esta com uma pequena vénia trocista. – Sentia falta de um bom combate e da última vez penso que tenha ficado com algo que me pertence.
- E tem toda a razão, mademoiselle. Estimo ao saber que ainda se lembra – desferiu outro golpe ao dizer isto, fazendo Alexandra recuar por entre os homens que lutavam desenfreadamente. Pingos quentes de sangue voaram até ao seu rosto, vindos de algures. Não queria saber de quem eram. Sentia-se mutilada só de pensar que poderia pertencer a algum dos seus marujos. – E desta vez não levará a melhor, porque não desistiremos. O lugar dos criminosos é na forca.
- NÓS NÃO SOMOS CRIMINOSOS! – A sua fúria voltou a evadir-se de dentro de si, repentinamente, investindo contra o capitão sem pensar. – É a escória que vos mandou que pratica os crimes! É a escumalha daquele marquês que mata por ganância! É a ele que os espanhóis pagam para contratar corsários!
Enquanto dizia isto, a sua espada rasgava o ar, embatendo contra a lâmina da do capitão sem saber o que fazia. Estava a agir impulsivamente. Queria que ele acreditasse nas suas palavras, queria que se fizesse justiça.
Ao mesmo tempo que duelavam, os seus passos levaram-nos para uma inclinação. Estavam a subir para a proa.
Alexandra golpeava a espada do homem incansavelmente. Todavia, quando ergueu o braço para desferir outra estocada, uma incompreensível e imensa dor perpassou-lhe as costas, por entre as costelas, parecendo quase vinda do coração. Sentia-la, a lâmina pequena e aguçada de uma flecha dentro de si. Mas como fora possível acertarem-lhe tão precisamente?
Recuou, tentando ganhar forças para respirar, mas cada movimento que o seu peito fazia parecia-lhe insuportável. O capitão baixou a espada, estupefacto e incapaz de agir. Sentia-se confuso com aquela paragem brusca do combate.
Assim, Alexandra ganhou forças para fazer o que tinha de ser feito. A única forma digna de finalizar tudo aquilo.
De dentro de si soou um grito, não de dor, apesar do esforço lhe destroçar o corpo.
- Voltem ao Flecha Dourada, já! Saiam daqui!
Fincou a espada no chão para se aguentar em pé. Não sabia se a tinham escutado, no entanto não conseguia gritar novamente. O seu espírito começava a toldar-se. Nunca pensara que uma simples flecha pudesse ter tais consequências.
***
Alonso viu, impávido, os seus companheiros de mar, regressarem ao navio. Ele e mais uma dúzia tinham ficado no navio, atacando o inimigo com flechas, apesar de, por entre todo aquele nevoeiro, terem disparado poucas com receio de ferirem quem não devessem. Foram lançadas só as que tinham um alvo certo. Ele mesmo dera a ordem.
- Porque estão a regressar? – Perguntou a um marinheiro que acabara de cair ao seu lado e se levantava com rapidez.
- A capitã deu-nos essas ordens, e disse para nos pormos a andar. Eu estava ao pé dela, foi atingida por uma flecha, muito possivelmente no coração – respondeu o homem. Tinha um aspecto lastimoso, um dos braços possuía uma chaga aberta, donde escorria sangue, e não tão pouco assim.
- Não… isso não é possível – murmurou Alonso incrédulo e ao mesmo tempo chocado. Parecia não querer acreditar no que ouvia.
- Ela deu-nos uma ordem, e muitos de nós ouvimo-la. Partimos, já!
- Não a podemos deixar lá! Não…
O homem não o ouviu e afastou-se agarrado ao braço ferido. Poucos minutos depois estavam a afastar-se da nau da guarda. Alonso continuava perto da amurada a vê-la ficar cada vez mais distante. Do seu único olho derramava-se uma pequena e dissimulada lágrima. Por vezes o que estava certo era demasiado doloroso.

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