domingo, 30 de março de 2014

Sombra

Erlkönig, Julius von Klever (1887)


Encolheu-se no seu canto escuro. Tinha medo, medo que a vissem, medo que a pisassem e interferissem com o seu ser mutável.

Olhou em redor, muito quieta. Nos céus, dois pares de asas recortadas rasgaram a noite, intrometendo-se entre ela e o luar que era seu pai e mãe, gerador de um fruto sombrio. Estremeceu, parte de si esvaindo-se, substituído por qualquer coisa igual mas diferente. Mas o morcego depressa desapareceu e, com sorte, manter-se-ia igual a si.

Então, os olhos negros escancararam-se. Cavalgando abaixo das estrelas, uma horda de terríveis nuvens armadas de chuva e relâmpagos aproximava-se, empurrada por um vento que se ergueu dos confins da noite. O coração invisível parou, enquanto juntos lhe pilharam o luar. E, na escuridão, ela desapareceu.

Quando as nuvens se afastaram para paragens desconhecidas, uma entidade ressurgiu naquele mesmo lugar. Era ela e não era. Porque as sombras são mutáveis e efémeras.

Cem Palavras: desafio de escrita criativa (Noite)
Versão estendida

sexta-feira, 28 de março de 2014

Vazio


Ele grita, grita tão alto,
Tons que assombram,
Conquanto vozes de ninguém.

E rompe o peito sem ter
Carne, osso, alma a romper.

Dizem-no nada;
Dizem-no por dizer.

Pétala apartada da flor,
Imaginário que é rio
De leito seco. Vazio.

domingo, 23 de março de 2014

E se as cores sangrassem?



E se as cores sangrassem?
Se fosse mar e dilúvio
A paleta que é vida além
Tela tisnada a pincel
Com guache de ninguém?

E se a chuva fosse tinta?
Se cada gota pintasse,
Ao toque molhado
Dos seus dedos sem fim,
Viçosos verdes de prado?

Seria guache, seria tinta, seria cor,
Seria dilúvio, mar, chuva e gota,
Seria pincel, seria dedos,
Seria vida de além e mundo
D’eternos segredos.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Sê Ínfimo e o Infinito Tal



Sê ínfimo e o infinito tal,
Filho dos meandros e dos pequenos
Que são eternos do que é menos
E restos d'infinitesimal.

domingo, 16 de março de 2014

Metamorfose

Spring Delight, Vladimir Kush 

Observei-a um último instante. Ela estava viva. O seu riso tímido brotava a cada brisa solta que a tomava nos braços, a cada doce ave que lhe pousava nos ramos frágeis, a cada despontar ligeiro que espreitava o mundo. Eram rebentos de si, seiva da sua seiva, vida da sua vida, um multiplicar frágil com que beijava o ar e tentava alcançar o céu. Com um abraçar ao mundo, interrompera a nudez do seu ciclo e dançava nos novos tons.

Num derradeiro sorriso de despedida, dei vontade à metamorfose e fluí entre partículas, absorvido pela terra. Alimento seu, parte dela.

Cem Palavras: desafio de escrita criativa (Primavera)

sábado, 8 de março de 2014

Hoje há quem tenha o Amanhã


Hoje há quem espreite tímido
Por entre as gotas da chuva ida,
Há quem se esconda ao sol
Que de intenso olvida,
Há quem flutue, fátuo,
Na nuvem que navega o céu,
Há quem seja fumo no nevoeiro,
E indistinto no seu véu.
Hoje há quem tenha o Amanhã
Mas seja o que o Ontem viveu.


Na Dušičky, Jakob Schikaneder (1888)