O Sol
escondia-se entre as copas das árvores, sombreando a floresta, contudo a caçada
ainda não terminara. O rosnar de um enorme urso pardo vibrou em redor e fez
Bahinil escrutinar a vegetação, enquanto os dedos se crispavam na longa lança.
Aquele animal já atacara três homens da tribo do seu cônjuge, ficando um deles
mortalmente ferido. Tinham que acabar com ele.
Avançou com
passos leves, saltando sobre as raízes que se contorciam fora da terra.
Procurou pegadas de urso, marcas de garras nos troncos, dejectos que
demarcassem a sua passagem, contudo a área estava limpa. Demasiado.
Resmungou para
si e baixou-se junto a uma marca. Tocou-lhe ao de leve com as pontas dos dedos
da mão livre, mas apercebeu-se logo de que não poderia ser a pegada de um urso,
apesar do tamanho.
Um leve restolhar
na vegetação fê-la abrir muito os olhos azuis, ao aperceber-se do erro que
cometera ao abstrair-se do resto da floresta por meros segundos.
Num balanço
súbito, varreu o ar com a ponta da lança, antes de encarar um enorme lobo de
pêlo e orbes castanhos, que mirou a arma por um instante, antes de a encarar.
– Pelos
deuses, Dracil – notou Bahinil, retomando a respiração. – Pregaste-me um susto.
Não sabias fazer um pouco mais de ruído?
O lobo abanou
a cabeça, sem tirar os olhos dela.
“Não devias
ter vindo. O teu lugar é na aldeia.”
– O tanas.
Estava preocupada contigo e com o nosso filho. Partiram da tribo ao raiar da
aurora e não voltaram até agora – acusou, baixando a lâmina.
“Porque ainda
não encontrámos o urso. Perdemos-lhe o rasto. E o teu cheiro, no meio disto,
não está a ajudar nada” comentou, erguendo o nariz e farejando o ar.
O esgar de
irritação dela pareceu não afectar o lobo gigante.
“Ele não está
longe. Volta para a tribo” enfatizou, antes de lhe virar a cauda, preparando-se
para voltar a entrar na floresta.
– Seu lobo
presunçoso de uma figa… – rosnou para si, apesar de saber que ele ouviria. –
Vais ficar um mês em abstine…
O resto das
palavras foram aniquiladas por um rosnar tremendo que quase lhe perfurou os
tímpanos. Acocorou-se a tempo de evitar uma patada de garras em riste, que
ainda lhe arrancou meia dúzia de cabelos.
Dracil
aproveitou o espaço livre acima da cabeça da mulher para se impulsionar contra
o urso, de mandíbulas já abertas. Os dentes afiados fincaram-se no antebraço
peludo do animal, arrancando-lhe um rosnar mais forte, onde foi impossível
distinguir a dor da raiva.
Bahinil
levantou-se depressa e afastou-se para uma distância segura onde pôde analisar
a cena. O lobo foi arremessado contra um tronco, deixando escapar um ganido de
dor, mas não tardou a recompor-se, a tempo de se esquivar de outra investida
impulsiva que arrancou pedaços de casca à árvore. Os olhos negros do urso
seguiram o movimento de Dracil, enquanto as narinas se dilatavam. Arreganhou os
dentes e investiu para o lobo, tentando abocanhar-lhe o pescoço.
“Foge daqui,
Bahinil!” urgiu ainda assim uma voz, dentro da cabeça dela.
– Não –
sussurrou em resposta, antes de cerrar os dentes e investir contra o urso.
A lâmina da
lança atingiu-o no flanco esquerdo, perfurando-lhe a pele espessa e a camada de
gordura. O urro que lhe arrancou infiltrou-se na alma e fê-la hesitar um
momento, o que foi o suficiente para que uma patada a atingisse num ombro e a
atirasse ao chão.
Ao vê-la por
terra, o rosnar do lobo subiu de tom e este atirou-se sobre o possante animal.
Ambos tombaram, no entanto os dentes afiados do predador afincaram-se na
garganta do urso, constringindo-lhe a traqueia com intenção de o sufocar. No
entanto o enorme animal não tinha intenções de se deixar matar.
Vindo de
longe, um uivo longo interpôs-se entre os rosnares do urso. No momento seguinte,
como se aquilo tivesse sido uma distracção, o lobo era novamente arremessado
pelo ar com toda a força. Uma das patas dianteiras fora ferida pelas garras da
besta, no desespero de se libertar das mandíbulas do lobo.
O urso ofegou,
depois de se erguer sobre as quatro patas, com a lança ainda ferrada no corpo.
Enquanto o fazia, estudou qual o melhor alvo a atacar, e a escolhida foi Bahinil,
cujo cabelo branco já se manchara de vermelho.
Com um ronco
de ameaça, o animal deu um passo para a presa, que não tardara a desembainhar a
adaga presa à bota de couro. Apontou-lha, enquanto recuava um passo lento.
Lançou uma mirada a Dracil, pelos cantos olhos. Atordoado, ele ainda se
recompunha da queda.
Inspirou fundo
e recuou um novo passo, antes de se precipitar por entre as árvores numa
corrida desenfreada. O urso não tardou um segundo a partir no seu encalço,
quebrando arbustos e ramos mais baixos à passagem da sua forma corpulenta.
– Anda,
segue-me – sussurrou Bahinil, por entre os dentes.
No entanto,
mal o disse, ele parou de a perseguir, desviando a sua rota e desaparecendo
entre a vegetação.
– Filho da mãe
– sussurrou depois de parar, ofegante.
A escuridão que
caíra demasiado depressa tomava conta das sombras como uma mãe, encobrindo
nelas o grande animal.
Usou aquele
momento para recuperar o fôlego e pensar. O urso parecia ser mais inteligente do
que aquilo que era normal, não podia precipitar-se. Apurou então os ouvidos.
Conseguia escutar um restolhar à distância, talvez fruto da lança que o animal
trazia presa em si. Quando deixasse de a ouvir, era sinal de que ele parara e
esperava que fosse a presa a alcançá-lo, como acontecera momentos atrás. Como
previra, não tardou a que fosse só o ruído da noite a sussurrar mais alto.
Trocou a adaga
de mão e pegou num pau comprido. Raspou-lhe uma das extremidade para improvisar
outra lança e partiu em busca do predador, com mais cautela do que antes, atenta
a qualquer roçagar ou a um respirar mais ruidoso. Para além disso, fez por
ignorar o ardor na nuca.
Após algum
tempo, escutou um ruído furtivo atrás de si. Fingiu ignorá-lo e continuou em
frente, esperando dar confiança suficiente à besta para se aproximar um pouco mais.
“Estou perto,
o Cedric está à tua frente” sussurrou a voz de Dracil, como se houvesse a
possibilidade de lhes ouvirem os pensamentos. “Continua a avançar.”
Bahinil engoliu
em seco, expectante, e fê-lo, até não poder ignorar mais e olhar para trás. A
primeira coisa que descortinou entre a vegetação foi o brilho dos orbes negros,
e só depois o corpo que se camuflava com o anoitecer. Quando o urso percebeu
que ela dera pela sua presença, rosnou e lançou-se sobre ela.
“Baixa-te,
Mãe!”
O grito
estremeceu-lhe a cabeça, já de si meia atordoada. Hesitou um instante, antes de
se acocorar. Outro lobo, um pouco menos corpulento que o primeiro, lançou-se
sobre o urso com toda a força, tombando-o. O chão estremeceu sob os pés de
Bahinil, com o impacto.
Não tardou a
que o pai se juntasse ao filho, de dentes arreganhados, e juntos combateram o
enorme urso. O lobo mais pequeno conseguiu recuperar a lança e devolveu-a a
Bahinil enquanto Dracil ocupava o urso com ataques esquivos que não eram de
todo mortais mas também não o deixavam fugir. O seu plano era exauri-lo, até se
tornar numa presa fácil.
Quando o
inimigo estava já mais lento, Bahinil sopesou a lança na mão e atentou os
movimentos incessantes do enorme animal. Respirou fundo antes de dar balançou
ao braço, fazer pontaria, e arremessar a arma. A lança cortou o ar e cravou-se
no peito do urso. Não estava certa de que lhe tivesse acertado no coração,
contudo após mais alguns segundos o enorme animal tombou e não se voltou a
erguer. O lobo mais pequeno estava para lhe abocanhar o pescoço quando, de
súbito, toda a enorme forma refulgiu, iluminando a noite com um azul espectral,
antes de rebentar em múltiplos flocos de luz.
Dracil ergueu
o nariz e voltou a farejar o ar. Uma dessas partículas que lembrava um
pirilampo tocou-lhe no nariz e, acto feito, rebentou em partículas ainda mais
pequenas, que se extinguiram pouco depois, deixando-os na penumbra. Do corpo do
urso pardo não havia sinal.
– O que foi
isto? – murmurou Bahinil, estupefacta.
Enquanto isso,
o corpo dos dois lobos sofrera uma metamorfose abrupta, até retomarem à forma
humana.
– Bruxaria, ou
um monte de espíritos da floresta que decidiu divertir-se à nossa conta. Estou
inclinado para a última hipótese – retorquiu Dracil, de mau humor. Era um homem
alto, de porte intimidante para os homens e apelativo às mulheres. – E tu
arriscaste-te demasiado. Cheiras a sangue…
– Foi só uma
cabeçada – notou Bahinil, levando uma mão à nuca. – E tu, que tens o braço todo
estraçalhado?
– São só uns
arranhões, exagerada – defendeu-se, flectindo o braço ferido e contendo um
gemido de dor, para não dar parte de fraco.
Enquanto discutiam,
o filho aproximou-se deles e passou os braços sobre os ombros de ambos.
– Vá, não
discutam, que estou faminto. Vamos antes voltar para a aldeia. Estou mortinho
por provar o bolo que a mãe fez para o teu aniversário.
Dracil piscou
os olhos e mirou a esposa, muito espantado.
– Fizeste um
bolo para mim?
– Não – fungou
Bahinil, indo recuperar a lança. – E, já agora, vais dormir na rua.
Cedric deu uma
risada animada, enquanto olhava o pai, de soslaio, esperando uma reacção. E teve-a.
Dracil
alcançou-a com passadas largas, agarrou-lhe o rosto sem aviso, e roubou-lhe um
beijo. Antes que Bahinil pudesse barafustar, pegou nela e lançou-a sobre um
ombro.
– Vá, vamos lá
comer esse bolo – disse, dando-lhe uma palmada no traseiro.
Bahinil corou
que nem um tomate e deu-lhe uma palmada nas costas, enquanto esperneava.
– Põe-me no
chão, rafeiro! Vou arrancar-te os lábios à dentada!
Dracil soltou uma
gargalhada mais descontraída. Adorava deixá-la fora de si.
Nota:
Bahinil © me
Ambas as
personagens pertencem ao RPG "Terra
Negra".