segunda-feira, 29 de abril de 2013

O Urso e o Lobo

Magic Forest, by Andarin


O Sol escondia-se entre as copas das árvores, sombreando a floresta, contudo a caçada ainda não terminara. O rosnar de um enorme urso pardo vibrou em redor e fez Bahinil escrutinar a vegetação, enquanto os dedos se crispavam na longa lança. Aquele animal já atacara três homens da tribo do seu cônjuge, ficando um deles mortalmente ferido. Tinham que acabar com ele.
Avançou com passos leves, saltando sobre as raízes que se contorciam fora da terra. Procurou pegadas de urso, marcas de garras nos troncos, dejectos que demarcassem a sua passagem, contudo a área estava limpa. Demasiado.
Resmungou para si e baixou-se junto a uma marca. Tocou-lhe ao de leve com as pontas dos dedos da mão livre, mas apercebeu-se logo de que não poderia ser a pegada de um urso, apesar do tamanho.
Um leve restolhar na vegetação fê-la abrir muito os olhos azuis, ao aperceber-se do erro que cometera ao abstrair-se do resto da floresta por meros segundos.
Num balanço súbito, varreu o ar com a ponta da lança, antes de encarar um enorme lobo de pêlo e orbes castanhos, que mirou a arma por um instante, antes de a encarar.
– Pelos deuses, Dracil – notou Bahinil, retomando a respiração. – Pregaste-me um susto. Não sabias fazer um pouco mais de ruído?
O lobo abanou a cabeça, sem tirar os olhos dela.
“Não devias ter vindo. O teu lugar é na aldeia.”
– O tanas. Estava preocupada contigo e com o nosso filho. Partiram da tribo ao raiar da aurora e não voltaram até agora – acusou, baixando a lâmina.
“Porque ainda não encontrámos o urso. Perdemos-lhe o rasto. E o teu cheiro, no meio disto, não está a ajudar nada” comentou, erguendo o nariz e farejando o ar.
O esgar de irritação dela pareceu não afectar o lobo gigante.
“Ele não está longe. Volta para a tribo” enfatizou, antes de lhe virar a cauda, preparando-se para voltar a entrar na floresta.
– Seu lobo presunçoso de uma figa… – rosnou para si, apesar de saber que ele ouviria. – Vais ficar um mês em abstine…
O resto das palavras foram aniquiladas por um rosnar tremendo que quase lhe perfurou os tímpanos. Acocorou-se a tempo de evitar uma patada de garras em riste, que ainda lhe arrancou meia dúzia de cabelos.
Dracil aproveitou o espaço livre acima da cabeça da mulher para se impulsionar contra o urso, de mandíbulas já abertas. Os dentes afiados fincaram-se no antebraço peludo do animal, arrancando-lhe um rosnar mais forte, onde foi impossível distinguir a dor da raiva.
Bahinil levantou-se depressa e afastou-se para uma distância segura onde pôde analisar a cena. O lobo foi arremessado contra um tronco, deixando escapar um ganido de dor, mas não tardou a recompor-se, a tempo de se esquivar de outra investida impulsiva que arrancou pedaços de casca à árvore. Os olhos negros do urso seguiram o movimento de Dracil, enquanto as narinas se dilatavam. Arreganhou os dentes e investiu para o lobo, tentando abocanhar-lhe o pescoço.
“Foge daqui, Bahinil!” urgiu ainda assim uma voz, dentro da cabeça dela.
– Não – sussurrou em resposta, antes de cerrar os dentes e investir contra o urso.
A lâmina da lança atingiu-o no flanco esquerdo, perfurando-lhe a pele espessa e a camada de gordura. O urro que lhe arrancou infiltrou-se na alma e fê-la hesitar um momento, o que foi o suficiente para que uma patada a atingisse num ombro e a atirasse ao chão.
Ao vê-la por terra, o rosnar do lobo subiu de tom e este atirou-se sobre o possante animal. Ambos tombaram, no entanto os dentes afiados do predador afincaram-se na garganta do urso, constringindo-lhe a traqueia com intenção de o sufocar. No entanto o enorme animal não tinha intenções de se deixar matar.
Vindo de longe, um uivo longo interpôs-se entre os rosnares do urso. No momento seguinte, como se aquilo tivesse sido uma distracção, o lobo era novamente arremessado pelo ar com toda a força. Uma das patas dianteiras fora ferida pelas garras da besta, no desespero de se libertar das mandíbulas do lobo.
O urso ofegou, depois de se erguer sobre as quatro patas, com a lança ainda ferrada no corpo. Enquanto o fazia, estudou qual o melhor alvo a atacar, e a escolhida foi Bahinil, cujo cabelo branco já se manchara de vermelho.
Com um ronco de ameaça, o animal deu um passo para a presa, que não tardara a desembainhar a adaga presa à bota de couro. Apontou-lha, enquanto recuava um passo lento. Lançou uma mirada a Dracil, pelos cantos olhos. Atordoado, ele ainda se recompunha da queda.
Inspirou fundo e recuou um novo passo, antes de se precipitar por entre as árvores numa corrida desenfreada. O urso não tardou um segundo a partir no seu encalço, quebrando arbustos e ramos mais baixos à passagem da sua forma corpulenta.
– Anda, segue-me – sussurrou Bahinil, por entre os dentes.
No entanto, mal o disse, ele parou de a perseguir, desviando a sua rota e desaparecendo entre a vegetação.
– Filho da mãe – sussurrou depois de parar, ofegante.
A escuridão que caíra demasiado depressa tomava conta das sombras como uma mãe, encobrindo nelas o grande animal.
Usou aquele momento para recuperar o fôlego e pensar. O urso parecia ser mais inteligente do que aquilo que era normal, não podia precipitar-se. Apurou então os ouvidos. Conseguia escutar um restolhar à distância, talvez fruto da lança que o animal trazia presa em si. Quando deixasse de a ouvir, era sinal de que ele parara e esperava que fosse a presa a alcançá-lo, como acontecera momentos atrás. Como previra, não tardou a que fosse só o ruído da noite a sussurrar mais alto.
Trocou a adaga de mão e pegou num pau comprido. Raspou-lhe uma das extremidade para improvisar outra lança e partiu em busca do predador, com mais cautela do que antes, atenta a qualquer roçagar ou a um respirar mais ruidoso. Para além disso, fez por ignorar o ardor na nuca.
Após algum tempo, escutou um ruído furtivo atrás de si. Fingiu ignorá-lo e continuou em frente, esperando dar confiança suficiente à besta para se aproximar um pouco mais.
“Estou perto, o Cedric está à tua frente” sussurrou a voz de Dracil, como se houvesse a possibilidade de lhes ouvirem os pensamentos. “Continua a avançar.”
Bahinil engoliu em seco, expectante, e fê-lo, até não poder ignorar mais e olhar para trás. A primeira coisa que descortinou entre a vegetação foi o brilho dos orbes negros, e só depois o corpo que se camuflava com o anoitecer. Quando o urso percebeu que ela dera pela sua presença, rosnou e lançou-se sobre ela.
“Baixa-te, Mãe!”
O grito estremeceu-lhe a cabeça, já de si meia atordoada. Hesitou um instante, antes de se acocorar. Outro lobo, um pouco menos corpulento que o primeiro, lançou-se sobre o urso com toda a força, tombando-o. O chão estremeceu sob os pés de Bahinil, com o impacto.
Não tardou a que o pai se juntasse ao filho, de dentes arreganhados, e juntos combateram o enorme urso. O lobo mais pequeno conseguiu recuperar a lança e devolveu-a a Bahinil enquanto Dracil ocupava o urso com ataques esquivos que não eram de todo mortais mas também não o deixavam fugir. O seu plano era exauri-lo, até se tornar numa presa fácil.
Quando o inimigo estava já mais lento, Bahinil sopesou a lança na mão e atentou os movimentos incessantes do enorme animal. Respirou fundo antes de dar balançou ao braço, fazer pontaria, e arremessar a arma. A lança cortou o ar e cravou-se no peito do urso. Não estava certa de que lhe tivesse acertado no coração, contudo após mais alguns segundos o enorme animal tombou e não se voltou a erguer. O lobo mais pequeno estava para lhe abocanhar o pescoço quando, de súbito, toda a enorme forma refulgiu, iluminando a noite com um azul espectral, antes de rebentar em múltiplos flocos de luz.
Dracil ergueu o nariz e voltou a farejar o ar. Uma dessas partículas que lembrava um pirilampo tocou-lhe no nariz e, acto feito, rebentou em partículas ainda mais pequenas, que se extinguiram pouco depois, deixando-os na penumbra. Do corpo do urso pardo não havia sinal.
– O que foi isto? – murmurou Bahinil, estupefacta.
Enquanto isso, o corpo dos dois lobos sofrera uma metamorfose abrupta, até retomarem à forma humana.
– Bruxaria, ou um monte de espíritos da floresta que decidiu divertir-se à nossa conta. Estou inclinado para a última hipótese – retorquiu Dracil, de mau humor. Era um homem alto, de porte intimidante para os homens e apelativo às mulheres. – E tu arriscaste-te demasiado. Cheiras a sangue…
– Foi só uma cabeçada – notou Bahinil, levando uma mão à nuca. – E tu, que tens o braço todo estraçalhado?
– São só uns arranhões, exagerada – defendeu-se, flectindo o braço ferido e contendo um gemido de dor, para não dar parte de fraco.
Enquanto discutiam, o filho aproximou-se deles e passou os braços sobre os ombros de ambos.
– Vá, não discutam, que estou faminto. Vamos antes voltar para a aldeia. Estou mortinho por provar o bolo que a mãe fez para o teu aniversário.
Dracil piscou os olhos e mirou a esposa, muito espantado.
– Fizeste um bolo para mim?
– Não – fungou Bahinil, indo recuperar a lança. – E, já agora, vais dormir na rua.
Cedric deu uma risada animada, enquanto olhava o pai, de soslaio, esperando uma reacção. E teve-a.
Dracil alcançou-a com passadas largas, agarrou-lhe o rosto sem aviso, e roubou-lhe um beijo. Antes que Bahinil pudesse barafustar, pegou nela e lançou-a sobre um ombro.
– Vá, vamos lá comer esse bolo – disse, dando-lhe uma palmada no traseiro.
Bahinil corou que nem um tomate e deu-lhe uma palmada nas costas, enquanto esperneava.
– Põe-me no chão, rafeiro! Vou arrancar-te os lábios à dentada!
Dracil soltou uma gargalhada mais descontraída. Adorava deixá-la fora de si.


Nota:

Cedric & Dracil © Morganadu Lac (Ana Santo)
Bahinil © me

Ambas as personagens pertencem ao RPG  "Terra Negra".

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Da Cecile, com Amor...


“Lá fora, a noite caía tempestuosa. A chuva fustigava as altas janelas e os belos vitrais feitos em honra do rei e da rainha do Submundo abanavam sob o impacto do vento. Jihm soltou um suspiro cansado e passou uma mão pelos olhos que teimavam em fechar-se, como se as pálpebras pesassem uma tonelada. Já era tarde, e a sua família esperava-o. Nenhum deles previra que se demorasse muito mais que o normal, no seu próprio dia de aniversário. Mas trabalho era trabalho.

Passou a penugem da pena pelo queixo, enquanto observava o inventário de livros que a bibliotecária mestre o deixara a preencher. Não podia sair dali enquanto não o terminasse. Contudo, ainda faltavam tantas páginas! Soltou um gemido angustiado que fez a chama da candeia estremecer em solidariedade para com ele. Por fim, voltou a pegar nos pergaminhos e levantou-se da cadeira estofada e demasiado confortável, para ir passar revista aos livros.

A lareira de fogo mágico crepitava, lançando vagas de calor que muitos leitores nocturnos apreciavam, principalmente em dias como aquele. Além disso, já ouvira rumores de que alguns dos príncipes gostavam daquele espaço para dar asas a outros divertimentos. Felizmente nunca testemunhara mais do que olhares comprometidos, e um ou outro beijo.

Quando alcançou o lado norte da biblioteca real, levantou o braço e iluminou uma prateleira ao nível do seu peito, onde repousavam três dos quatro exemplares que ele próprio escrevera. Sorriu com um orgulho de pai e passou revista à restante estante.

As luzes oscilavam, criando sombras que o perseguiam ao longo dos corredores formados pelas gigantescas estantes. Rastejavam ao longo do chão, envolvendo-se com a própria silhueta do bibliotecário, e tentavam saltar-lhe em cima a partir das prateleiras mais altas. Num instante súbito quase todas se extinguiram, quando um descomunal relâmpado iluminou a biblioteca. Jihm estremeceu e desviou o olhar para as janelas, a tempo de ver um vulto cortar a luz, antes de desaparecer com o extinguir da luz. O ribombar do trovão não se fez esperar, parecendo fazer oscilar os alicerces do palácio.

 – Pelos deuses – sussurrou, recuando um passo. – O que foi aquilo?

“Aquilo?”

A pergunta ecoou em redor, por mais tempo do que o suposto, impedindo-se de ser absorvida pelos livros. A voz que a pronunciara era suave, quase melíflua, e, ao mesmo tempo, terrivelmente assustadora. Os cabelos da nuca do rapaz eriçaram-se, mas foi só quando o fogo mágico da lareira se apagou que Jihm percebeu que deveria ter fugido antes, pois agora já não teria tempo.

De um só ímpeto, a escuridão encurralou-o dentro de um pequeno círculo. A sua protecção era apenas concedida pela chama que tremeluzia dentro da candeia, por isso ergueu-a acima da cabeça, tentando aumentar o raio que o separava da negrura. Contudo, a sua posição tinha um ponto fraco do qual o seu atacante se aproveitou.

Usando a zona de sombra no topo da candeia, um tentáculo de escuridão serpenteou esquivamente até à sua mão. O toque veio com a dor fina de uma picada, que o fez soltar a candeia.

O estilhaçar não se equiparou ao barulho do trovão, contudo foi como se o seu coração parasse de bater. A chama durou apenas um instante de segundo, antes de as sombras se abaterem sobre Jihm, tragando-o.”

Piscou os olhos e levantou o olhar para a namorada, que o mirava com uma expectativa de criança perante uma suposta obra-prima. O cabelo cor de fogo e as sardas que lhe pintalgavam as bochechas realçavam-se sob a luz das velas, e os olhos verdes brilhavam.

– Acaba assim?

– É só o princípio. Para o ano dou-te mais um bocadinho da história. Quando tiveres aí uns 300 anos terás o fim – disse ela, com um sorriso amplo. – Mas não vais morrer, é tudo o que te posso adiantar.

Jihm não conseguiu evitar rir-se. Pousou as páginas escritas numa letra gorducha e certinha, mostrando o quão ponderadas tinham sido as palavras. E, pela falta de erros ortográficos ou texto riscado, ele supunha que Cecile escrevera e revira enésimas vezes aquele pequeno pedaço de história.

– A partir de agora, vou esperar ansiosamente pelo meu aniversário, só para saber as tortuosidades que me vais fazer – notou, esticando uma mão para o rosto macio dela. – Obrigado, meu amor.

Cecile corou um pouco e chegou-se mais para ele, roubando-lhe um beijo terno.

– Parabéns, meu escritor – sussurrou, deixando o nariz roçar-se no dele.


Lantern 02, by Snowfake

Nota:

Cecile © me

Ambas as personagens pertencem ao RPG  "Terra Negra".