sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O Espelho

Um prólogo de uma história que comecei e nunca acabei...



O mundo murchou nas pétalas dos dias e Elliana soltou um suspiro. Só dez dias tinham passado desde que deixara a decadência que se derramara sobre si. No entanto, sentia-a a espreitá-la, algures de recônditos distantes da sua alma, pronta para se apoderar dela novamente. Cerrou os dentes. Queria fazer alguma coisa, mas não sabia bem o quê e muito menos como. Olhou para as nuvens que se amontoavam sobrepostas, empurrando-se com tal violência que um relâmpago se deixou escapar de entre elas, com esperança de salvação. Aquele tom acinzentado não ajudava em muito o seu estado de espírito. Ergueu-se do parapeito da janela, deixando a cortina de tom rosa ocultar um pouco da batalha que se travava nos céus, no preciso momento em que um trovão se propagou sem piedade pela atmosfera, fazendo-a encolher-se, como se fosse ele um severo raspanete ao seu latente estado de espírito.
Elliana era uma simples jovem, ou pelo menos assim pensava, e qualquer um concordaria, não fosse ela, por mais que mero acaso, filha de um conhecido médium e possuidora de dons distintos que perspassavam as visões e as curas dos charlatões. Tirando isso, e uns incomparáveis olhos verdes que lembravam a vegetação amazónica enclausurada dentro de duas esmeraldas, era uma rapariga total e perfeitamente normal. O seu quarto, onde agora se encontrava, tinha um recheio de tom místico, onde se revelava a personalidade de uma adolescente de gostos invulgarmente interessantes. Uma estante que subia do chão ao tecto encontrava-se encostada a um canto, repleta de livros, muitos deles de fachada antiga, onde os pilares sustinham a antiga mitologia dos povos extintos. Sobre a cómoda, enfrente à cama, repousava uma bola cristalina de tom inatamente lilás, por onde se podia ver o desfocar arredondado do resto do quarto. A secretária ficava ao lado da janela, onde se amontoavam ordenada e desprezadamente vários cadernos repletos de infindáveis cálculos que, segundo a sua opinião, não serviam de grande coisa, sem ser tornar cada vez pior, numa intensificação estonteante, o que já estava a decair gradualmente no seu legítimo mundo. Era a evolução que o matava. A evolução e os humanos que a evoluiam sem pensar no apocalíptico e derradeiro golpe que estariam a preparar. Consequências impensadas de quem não faz uso da consciência que lhes é cedida tão gentilmente. No final de contas, nem todos somos marionetas de madeira necessitadas de um grilo falante como consciência, alguns talvez sejam, mas maior parte não.
Elliana guiou-se sem pensar até ao guarda-vestidos e abriu-o. Várias peças de roupa deixavam-se descair pesademente sobre os cabides de madeira, esperando que alguém estendesse a mão para as retirar de lá e serem usadas, no entanto, não era esse o interesse da jovem. O que a levara até ali fora o alto espelho anexado à porta. Olhou-se a si própria de cima a baixo, medindo o seu metro e setenta da altura com um tom desconfiado. Não era aquilo que na realidade desejava ver. Pouco se interessava pela sua camisola azul escura de gola alta com mangas exageradamente compridas que quase lhe ocultavam as mãos, ou mesmo a comprida trança negra que lhe caía até à cintura. Não, o que queria era muito diferente, era tudo o que representava a vida humana, não um conjunto fútil de adereços sem significado. Tocou no espelho com a ponta dos dedos, levando-o a tremeluzir fracamente como se por segundos a sua energia tivesse criado uma espécie de campo magnético à volta dele, levando-o a produzir o que se podia chamar de faíscas.
- Estás aí, meu amor? – Murmurou num tom fraco, mas esperançoso. Quem a visse e ouvisse, pensaria que estaria a admirar a sua própria pessoa naquele reflexo parado, deixando que o verde dos seus olhos profundos e enigmáticos corresse a sua figura magra mas esbelta sucessivas vezes. Mas quem vê para além dos olhos saberia que haveria mais, muito mais por detrás daquele olhar angustiado. Não veria o egocentrismo de quem se admira, nem a loucura que nada tem de louco de quem conversa sozinho por falta de companhia (e que mal tem os que o fazem? Possivelmente é tremendamente melhor que enclausurar pensamentos, deixando-os consumirem-nos, para, no final, só restar uma concha vazia). O espelho soltou um suspiro. Mas como poderia um espelho suspirar? Um pequeno sorriso abriu-se nos lábios naturalmente avermelhados de Elliana ao ver que, além do suspiro, algo mais estava a acontecer à superfície fria daquele objecto de reflexos e reflexões. A sua imagem ofuscava-se e ondulava, como a superfície de um pequeno lago, retirando a nitidez à imagem da jovem, mas ganhando a sua própria. Um tom escuro foi-se apoderando do reflexo à medida que as ondulações se amenizavam. Consigo, uma figura alta, com as feições ainda distorcidas. Os olhos de Elliana brilharam ao ver por fim o que tão profundamente desejava. Reflectido no espelho encontrava-se um ser de tez pálida e orelhas em forma de bico. Os seus olhos eram de um tom pouco vulgar, lilases, como raramente ou nunca se vê. Trajava-se de negro, com uma espécie de casaco comprido, e os cabelos compridos caíam-lhe pela frente dos ombros.
- Elliana... – murmurou. – Minha doce Elliana...
A sua mão tocou do lado de lá do espelho e a jovem pôde ver a ponta dos seus finos e pálidos dedos espalmarem-se um pouco, numa tentativa vã de tentar passar para o seu lado. Correspondeu-lhe. As suas mãos tentavam desesperadamente unir-se, para sempre se possível, no entanto, existia aquele entrave que os separava por mundos.
- Como estás, Elliot? – Quis saber a jovem, dando um leve beijo ao espelho frio, totalmente desprovido de emoções. Mas isso não lhe interessava, só queria que o seu príncipe o sentisse. Não lho podia dar, não podia sentir os seus lábios juntos a si. Mas como o desejava ardentemente!
- Mentir-te-ia se respondesse que estou bem, mas sem ti isso é impossível. Parece que a vida me escorre por entre os dedos, inescapavelmente. As lágrimas vertem-se sem eu querer nos momentos mais inconvenientes e... – a frase ficou pendente, enquanto olhava para o cinzento céu do seu mundo, indeciso.
- O quê, Elliot? O que se passa?
O ser do outro lado do espelho soltou um profundo suspiro e cerrou os olhos, deixando que um sorriso triste o invadisse.
- E quando olho para ti, quando sei que estamos tão próximos, imagino mil coisas para tentar escapar daqui, no entanto, a impossibilidade reflecte-se em cada pedaço deste espelho. – Uma ponta de raiva brotava das suas palavras, enquanto uma brilhante lágrima mal contida se escapou dos seus olhos lilases. Os olhos de Elliana acompanharam a lenta descida da lágrima pela pálida face, e também a sua vista se ofuscou no seu próprio choro de lamento. Como era possível que um tal mal conseguisse sobreviver depois de separar um par de amantes da forma mais cruel vista? Próximos mas distantes... seria aquela uma maldição eterna?
Encostou a testa ao vidro frio, deixando-se derramar em lágrimas, com pequenos soluços de tristeza.
- Desculpa se te fiz desesperar, Elliana. Há sempre uma forma. Nunca digas impossível quando vês o impossível acontecer. Somos de mundos diferentes, de terras distantes, mas juntos ficaremos, os nossos sentimentos são unos e os nossos corações estarão sempre juntos.
Elliana queria acreditar nas suas palavras com toda a sua força, mas aquela separação era demasiadamente vil. Destilava-lhe o coração, escortaçava-o sem amor ou piedade.
- Amor, olha para mim – pediu a voz calma de Elliot. Elliana não foi capaz de faze-lo. Continuou a chorar consigo própria, sozinha na sua solidão. Não sabia se suportaria aquilo por muito mais tempo. Não sabia se voltaria a conseguir olhar para aquele lilás enigmático por quem há muito se deixara levar num amor sem encalço. - Amo-te muito, não te esqueças disso – murmurou-lhe Elliot ao ouvido, como se estivesse ao seu lado. Elliana ia levantar a cabeça, para o fitar e absorver toda a sua beleza para um retrato na sua mente, mas algo a deteve, levando-a a olhar para trás. Ouvira passos vindos da porta do seu quarto.
Fechou a porta do guarda-vestidos repentinamente, correndo para a sua cama e deixando-se cair ao lado de um livro que colocou rapidamente à frente da sua face, para que as lágrimas não fossem notadas. Não queria que mais ninguém a visse assim. A porta do quarto abriu-se com um pequeno chiar de aviso, e a voz do seu pai fez-se ouvir num tom espantado.
- Ah! Estás aqui! Pensei que tivesses ido sair com a Gabriela! Elliana engoliu os soluços e tentou responder num tom normal, apesar de não ter a certeza de o ter conseguido fielmente.
- Está mau tempo, não gosto de sair com trovoada – limitou-se a responder, não tirando os olhos do livro. Não era uma mentira, mas porventura não seria toda a verdade, muito pelo contrário.
- Hum... também imaginei que assim fosse. Bem, vou deixar-te ler em paz. Mais logo espero-te para o almoço, sim, filha?
- Sim, sim – respondeu, pedindo a todos os seus deuses para que o pai não se demorasse.
Para seu alívio, ouviu a porta a fechar-se, agora silenciosamente, e baixou de imediato o livro. O seu pijama verde marinho balançava-se atrás da porta como um fantasma indolente. Levantou-se de um salto, precipitando-se sobre o armário. No entanto, quando o abriu, só o seu próprio reflexo se lhe dirigiu com um olhar mais que abandonado. Elliot tinha desaparecido, naquele seu mundo tão diferente mas tão igual ao seu. A sua mão esquerda, húmida das lágrimas, deixou-se escorregar por aquela superfície fria. O que poderia fazer?

Um Conselho

Descansa mas não durmas

Nos leitos cegos que te embalam.

Não esperes ou receies, que a busca

Do perdido se afaste de ti,

Pois ela busca-te para si.

Vê antes as nuvens passarem

E com elas o tempo denso

Que se corta à faca de dentro

Para fora, memória servida à mesa.

É veneno, não ignores os sentidos,

Não os traias e não os esqueças,

Pois eles são teus amigos.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Talvez

Numa hora de um outro dia, talvez chorasse, mas hoje não choro. Talvez corresse em rodopios, gritasse e cantasse aos que me ouvem ou estão por me ouvir, talvez lhes pegasse pelas mãos e dançasse com eles, feita insana de mente e sã de espírito. Mas qual o porquê? O porquê do que o talvez pudesse insurgir-me na mente? Mas não insurge, e pergunta esta é vã. Que o porquê se desvaneça nos seus vãos de esquina obscuros, nas suas ruelas labirínticas, porque eu fico-me só com o talvez. Talvez um dia mude de opinião, é um risco a correr que me habilito ao pôr uma hipótese. Mas não acredito, não creio, não o consigo imaginar. É a indiferença que me domina, de espírito e alma encoberta, de garras estendidas e mandíbulas abertas, ávida. E eu não gosto… Talvez um dia me livre dela. Talvez a mate de espada erguida, coragem em punho e vontade! Oh sim, aquela vontade que se foi pelo vento chamada para mais longe, tão longe de mim. E restou-me ela, de olhos brilhantes, verdes, tão verdes! Esmeraldas de justiça inconformada mas que se deita nos seus lençóis de espinhos que a fere. E ela ignora-os. A indiferença deve ser idiota, por ventura destituída de senso. Talvez porque o ignora, é-lhe indiferente. E a mim também. Mas não gosto dela… Talvez a possam levar embora, para o longe onde se perdeu a vontade? Que se acompanhem, que se anulem, digladiem até ao derradeiro suspiro. Talvez uma delas vença, ou talvez não. Esperarei o final, sentada, olhos perdidos no horizonte, cegos para o mundo e cegos para mim. Esperarei, como sempre fiz. E um dia talvez acorde. Talvez dance, talvez grite, talvez chore. E ninguém o saberá… quiçá.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A Morte do Dragão


Armaste-te em passado, de cota de malha
Desbotada de envelhecido tempo.
Armaste-te e partiste para a batalha,
Bateste dragão em entrechocares reminiscentes,
Bateste de espada em punho e entredentes,
Entoavas o hino que o matou,
Canto antigo e algures perecido
Com quem outrora o entoou.

E finaste-te em jóia negra.
O que de ti restou era um vão
Rochedo cravejado em pedra.
Não querias em estátua perecer,
E por ela gritou o ego ao morrer.
A honra ficou-se detida nesse coração,
O imortal rugiu e tu fugiste,
Da morte do sagaz dragão.

Que relembrou ele a lâmina contundente
Que um dia o trespassou.
Não ficaste tu, mas ficou ele,
Na aurora e no crepúsculo que anteviu,
No Mundo teu que fiel serviu;
E foi segredo plantado em semente.
Foi dia (aquele) em que se pôs
O puro esplendor do Sol Nascente.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A Voz


Vês no olhar uma sombra de choro,
Pintada a lápis e carvão.
Um esborratado indistinto de tristeza,
E um colorido de incerteza eremita
Que espreita da sua gruta esquecida.

Queres apagá-lo ou riscá-lo.
Não risques, que o riscar é eterno!
É prender no olhar um passado dorido
De viver o sentido do passar.
Quiçá, se o quiseres, melhor será apagar.

“Porém apagar é esquecer o viver”,
Diz-me, em voz cantada, o Ser, sem pensar,
“Esquecermo-nos do que marcou e cresceu,
Do que a nós prometeu um sonho profundo.”
E eu assenti, que mais alto falava a voz do Mundo.

“É perder o que o Fado escreveu
Com tinta permanente em pergaminho velho.
E dizer-me adeus, não o digam.
Não risquem, nem apaguem, mas pintem o olhar
Com o colorido por expressar.”

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Mundo Fugidio

Vagueei de olhar no mundo
Torto e recurvado, todo ele pisado.
Vagueei e observei. Naveguei.
Explorei mundo nefasto do olvidado.

Tinha ele de estranho tudo
O que vi e antevi pelo cortinado fechado.
E quando o abri não mais o vi,
Mundo aquele espreitado.

Escondera-se de tímido enfado,
O de a mim não querer ver.
Mas procurei-o eu contra o querer
Daquele mundo velado.

E encontrei-o, debaixo dos pés,
Esmagado em papel, pobre choroso.
Ofereci-lhe a mão e também eu chorei,
Que fugiu o mundo de mim, pesaroso.

Chamei-o, vendo-o correr ao longe,
Mas não mais regressou.
Fugiu temente de mim e o que fiz?
Fiquei junto ao que do mundo restou.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Corpúsculos de Céu



O quadro estava esborratado de pintado.
Um risco corria-o de lado a lado qual uma ponte,
Travessia que os corpúsculos corriam
Atarefados com os seus afazeres de pintores.

Mediam a tela com o sentido cego,
Vendo para além do observado que todos viam
E rebolavam pelas medições sentidas,
Gritando de medo, mas felizes aprendizes.

Saltaram de um risco para o outro,
Desordenados ou endiabrados, quem o saberia?
Pintaram-se, sobrepuseram-se, descuidados,
E sombrearam irmãos dos seus.

E quando olhei, eles olhavam-me.
Quietos de irrequietos, cansados de dançar.
E sorriam. Tão azuis quanto o céu,
Na sua tela recortada dos altos cerúleos.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Segredo

Olvido sopros de sussurros que cantas,
Ai de mim se os oiço!
De onde o encoberto oculta, às tantas,
Salta bicho que escondo.

E correrá livre, maldição!
Dirá o que não digo a ti, amigo,
Dirá o que minto ao coração,
E dirá ditos de sonhos contigo.

Não posso. Visto-o a negro.
Calo-o e que chore em murmúrio.
Que se lute, do tempo segredo,
Que se disfarce e oculte, mau augúrio.

Se o ama, porque não amar-me,
E não matar-me neste falecendo?
Amordaço-o e bato-lhe. E ele espicaça-me!
Continua cruel, vingativo mordendo.

Oh! Segredo és tu de crime em sangue
Escarlate de assassínio oculto.
E corpo sou eu, teu, exangue,
Nas brumas rubras do veludo.

Chamam-lhe amor… que mentira!
É tortura e martírio vivo.
Dizem-no virtude, eu digo-o ira,
A que tenho para comigo.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Domínio do Nada

Sob a pele, profundo inato de imperfeito e paladar quente de êxtase, prolonga-se, palmilhando carne decomposta, morta e sem fôlego a tomar. Acaricia-a, sussurra palavras num encanto de acordar e conta-lhe a vida do sorrir, trajando arrepios de frio quando este fugiu, despindo-lhe os segredos do dia do partir, e fingindo ser quem é o que não é, fingindo ser ele num espelho turvo que se afoga ao quebrar da maré.

E continua. Mergulha nas entranhas que se esvaem de pútridas, aspirando fedor e perfume de defunto crédulo, aquele que ali se findara. Findara sem se perder, tão requieto no seu morrer que diria vivo sem o ser, adormecido em sonho posto. Porém não lhe interessa o fútil do decair.

E continua, sorvendo lenta a mácula seiva do descoro, veia após veia, órgão após órgão. E pára. Escuta e absorve. E recua. Murmúrio agreste sente gritar vindo dali. Dali onde o Tudo se extinguia, dali onde o Nada era senhor poderoso, grão-duque da vontade e do desprezo e do ego enfermo.

Retrocedeu, passo ante passo, pois ali não era esperada. E saiu. A Vida nunca entraria nos domínios do Nada. E, corpo de coração que assim faleceu, é reino incontestável e indigno da vida perdida.