terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Rio que é sem ser



É aquele que não existe,
O que corre sem se ver,
Linha d'água que chora triste,
Por onde escorre o falecer,

É o que não é morte ou vida,
E de cujo leito transborda saber,
Dizem-no Tempo, aragem que suspira,
Fantasma e rio que é sem ser.


©Stephanie Pui-Mun Law, 2013

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

As aves são olhos intrépidos



As aves são olhos intrépidos,
Vales e montes trejeitos,
O sopro do vento é voz de sussurro,
Grito mudo, eterno uivo.

A chuva, timbrada em lágrima,
Embebe os lábios da terra,
Sorvida a lembrança distante
Dos confins do mar,
Donde se perde o mundo
Que nele é fonte e desaguar.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A Verdade Mente



A Verdade mente.
É entidade que constrange,
Distopia morta senciente
Que caminha sem pés.


sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Senta-te à Beira-rio

Senta-te à beira-rio.
Atenta o barco que ali vai
Corrente a baixo, que se esvai
Entre os cabelos do estio.

Entrança seus rumos.
Sê guia do destino, feiticeira,
Sê aquela que é ao olhar sereia,
E ao escutar sussurros.

Toca o Sol ao pôr.
Emprestado toma-lhe então
Luz, aconchego e coração,
Que seu cerne é flama e ardor.

Lança-os ao vento,
Áureo nómada, mensageiro.
Envia-o ao teu marinheiro
Que ao céu reserva-se atento.

Sob o seu toque e beijo será viva
A recordação deixada ao largo,
A doce donzela que de encargo
Vela o regresso à partida.


An Evening in Arcadia - Thomas Cole (1843)


domingo, 22 de setembro de 2013

Mão na mão


Mão na mão,
Alma e sangue no coração,
Conquanto o que vai e volta,
Conquanto o peito que se revolta.

Leve o pesar, peso com sentido a vida
E aguardo, que a guardo sentida,
Fruto do tempo que flui sem fluir,
Fruto do que vai e tarda em vir…


Poema outrora integrado num conto.

sábado, 21 de setembro de 2013

Passa quanto passa


Passa quanto passa,
E o que tem de passar,
Que o passo que lhe segue
O compasso de voltar,
Volta sem que o que persegue
Seja Passado e torne a passar.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Conto os dias que abalam


Conto os dias que abalam,
Conto as teias que fiaram,
As tecelãs do cavalgar;
Que é montado no Tempo
Que infante menino crescendo
Se há-de do mundo olvidar.

Pois malha dada, malha perdida,
Fio cortado à despedida,
Que parco é o decorrer,
Onde Átropos é a ponte,
E o trilho, de nome Caronte,
É tão sempiterno perecer.


A Golden Thread, John Melhuish Strudwick (1885)

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Sempre que o Sol fugir, chama por ele


Sempre que o Sol fugir, chama por ele,
Chama até a garganta arder e ser cinzas,
No tom carvão de voz daquele
A quem roubaram o horizonte.

Chama e canta hoje que amanhã
A voz finou a nota do Sol
E engoliu o tom.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Dá-me o Sonho do Mar





Dá-me o sonho do mar,
Aquele que embalam as ondas;
Dá-me o desejo de ser e não ser
Sal e areia e concha e reter
O sentido do que é uno,
Escuma revolta do sereno fundo;
Dá-me o toque do desaguo,
E a ebulição do marulhar;
Que se não for para dar,
Donde sopra a sereia sua canção,
Do rochedo íngreme do marejar,
Serei tempestade e aluvião,
E roubarei para mim o mar.

Somos o Ar, somos o Sangue


Somos o ar, somos o sangue,
Somos o corpo exangue
Que quando te respira
Inspira-te da alma a ira.

Suor sem água, soro
Que te alimenta, ó morto,
Somos a carne minada,
Come o verme que come nada.

E não és carne nem corpo,
Não és cartilagem nem osso,
Sem semente, vagem vazia,
És a miragem de um dia.


terça-feira, 23 de julho de 2013

As Rimas Roem a Corda


As rimas roem a corda,
Roem por roer o ruminar do fio,
Roedores de luz e de pavio,
Roem, engolem a cera d'outrora.

Restolha a noite, falta a luz,
Falta de cerne sem ser cerzido,
Falta do guia em vela vestido;
Vou, que já não me conduz.

Roeu, roeu, a rima comeu
O sinal do sim, não, talvez não,
Não!, talvez seja um senão
Que se perdeu, quiçá não sou eu.


sábado, 6 de julho de 2013

Rompem-se os fios

Rompem-se os fios que lhes prendem
Pulsos partidos por coser,
Rompem-se e desaguam do céu,
Rio de pedra a pedra, dilúvio d’escorrer.

Unem, ferem, fendem-se d’ablação
De ser unido e não ser,
Que é a fúria que as leva contidas
E apartadas no chover.

Pois caem donde o fogo caiu,
Queimam d’álgido o que é viver,
E degolam, degolam todo o tudo,
Tomam de si o perecer.

E fluem.


26 - Fúria

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Dama, Senhora e Sol de Verão



Espiga e espraia a alma quente,
Madura é a fruta a colher,
Se é sopro morno é corrente
Que vaga em escuma de seu ser.

Arde no abraço e o que é olhar
Olvida o tempo, fértil de coração,
No ciclo colhe sempre o semear,
É Dama, Senhora e Sol de Verão.

Dedicado à Tiana,
com um beijinho da Vuo

domingo, 16 de junho de 2013

O Sonho Emparedado

A lâmina refulgia a cada corte, a cada trespasse, a cada impacto no Muro do Inferno. A pedra contorcia-se, gritava com milhares de bocas e espumava lava ardente dos golpes, como se fosse sangue. Os rostos incrustados no basalto que conseguiam escapar às espadeiradas atiravam-lhe impropérios e revelavam-lhe o interior da boca ígnea, de gengivas nuas.
Todos eles eram espíritos malignos, e aquela fora a sua sentença pós-morte: viverem emparedados pelo crime de terem eles mesmo emparedado fosse o que fosse, desde um humano do qual desejavam vingança, aos sonhos de uma criança. E ali fora emparedado um dos seus sonhos, junto com o criminoso. Mas que sonho era? Ele não fazia ideia, pois ao perdê-lo perdera também a recordação do mesmo.
Com um golpe brusco, a espada rasgou uma das faces que se desfez em pó. Onde estava a do ser criminoso? Como reconhecê-lo entre todos aqueles infinitos rostos gémeos de pecado?
De súbito, o coração de Amadis entrou em fibrilação, ameaçando saltar-lhe do peito. Um olhar vazio cruzara-se com o seu e, sem conseguir evitar, mergulhou nele de cabeça.
Caiu sob um céu cinzento, sem ter onde se agarrar, até os pés tocarem no chão. Aterrou com um movimento felino e ergueu uma cabeça. À sua frente, uma silhueta feminina caminhava ao longo de uma estrada que não tinha fim, num passo decidido. Mas afastava-se, cada vez mais e mais, de costas voltadas para si.
Obrigou-se a afastar a visão e rosnou de fúria ao investir contra o espírito. A espada enterrou-se na fronte do rosto demoníaco que o fitou, boquiaberto. E o sonho inundou-o, a recordação dela, do seu sorriso, dos seus resmoneios, enquanto alma se desvanecia.

Onde estaria Aline?

25 - Lâmina de Sangue

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Proíba-se o não de negação



Proíba-se o não de negação,
Aquele que corta o passo já coxo,
Rouba do optimismo o coração,
E remete a Esperança à cirurgia.


sábado, 18 de maio de 2013

A Semente de Prata - Parte II

Silver Leaf, by Latyrx


Divyn vagueou pelo bosque, olhando por ente os ramos, enquanto escutava o peculiar tilintar das folhas quando o vento as agitava. Lembrava a voz das fadas, enquanto cantavam aos elementos.
“Escolhe uma árvore” disse Urië, sem aviso, apertando-lhe um pouco mais a mão.
– Porquê? – A elfo piscou os olhos.
“Por favor, simplesmente escolhe” pediu ele, esboçando um sorriso enigmático.
Apesar de não fazer ideia da razão do pedido, Divyn acedeu. Fechou os olhos e caminhou sem destino certo, deixando-se guiar pelo sexto sentido. Tropeçou numa raiz mais saliente e só não caiu porque Urië a apoiou. Mas, por fim, a mão acabou por tocar num dos troncos.
– Esta – sussurrou, abrindo os olhos para contemplar a sua escolhida. Linhas de prata corriam a casca , esguias, perdendo-se nos labirintos da árvore.
O seu príncipe fez um aceno e esticou as mãos para um ramo mais baixo. Colheu uma pequena semente, que lembrava uma ervilha prateada e observou-a com atenção, antes de pegar na mão da elfo e depositar nela a semente. A seguir fechou-lhe os dedos.
“Uma recordação, pelo teu aniversário. O sítio onde a plantares terá de ser escolhido pelo teu coração, e só por ele” recomendou, prendendo o olhar no dela. “Não te assustes quando ela desabrochar”.
Franziu as sobrancelhas.
– Porque me haveria de assustar? – quis saber, muito intrigada.
“A semente drena a terra de forma ávida, para conseguir despontar. Mas depois verás” garantiu.
Divyn remoeu-se de curiosidade e Urië sorriu ao sentir o que borbulhava na alma da namorada. Ofereceu-lhe um beijo de consolo, para depois a levar para casa.
Os lábios só se apartaram definitivamente quando ele abandonou o quarto dela, ao despontar do Sol.

Quando acordou, já perto da hora de almoço, Divyn procurou a caixinha de madeira dentro da qual guardara a semente. Ponderou por um pouco, antes de descer até ao jardim, onde andou às voltas, de regador na mão, até acabar por escolher um canteiro de pequenas flores azuis. Ajoelhou-se na terra ainda húmida e escavou um buraco com as próprias mãos, sujando as unhas de terra, até achar que já podia enterrar a semente. Ficou a mirar o lugar por um bocado, como se a árvore pudesse crescer de um segundo para o outro, mas acabou por perceber o quão tonto isso era. Abanou a cabeça e afastou-se.
No dia seguinte um burburinho matutino acordou-a. Esfregou os olhos e soltou um bocejo longo, antes de ir até à varanda, ainda descalça. Piscou os olhos. Os três jardineiros discutiam de forma acesa, à beira do canteiro onde plantara a sua semente de prata, e não foi difícil descobrir porquê: todas as pequenas flores azuis tinham definhado e morrido.
Levou as mãos à boca, chocada, lembrando-se de imediato do que Urië lhe dissera. Não o compreendera no momento, mas agora era por demais óbvio. Mas o que poderia fazer?
Os dias passaram sem que a árvore despontasse, o mesmo acontecendo em seu redor, num raio de dois metros. Todos os dias a elfo regava-a um pouco, frustrada. Ainda tentou inquirir Urië a respeito disso,  no entanto ele pediu-lhe apenas mais paciência.
Quase um mês depois, numa noite de Lua Cheia, Divyn escutou um tilintar abafado, vindo do exterior. Não o reconheceu logo, mas quando foi espreitar à vidraça, o brilho das folhas de prata, sob o luar, apanharam-na desprevenida. A árvore despontara, ultrapassara-a em altura, e estava repleta de flores de pétalas quebradiças. Sentando junto à base da árvore, Urië fez-lhe um aceno com a mão, chamando-a para admirar mais de perto o seu presente de aniversário.
Uma semana depois, para surpresa sua, e dos jardineiros, o canteiro de flores azuis floresceu mais viçoso do que nunca, quando a árvore devolveu os recursos que tomara emprestados.

Nota:

Urië © me

Ambas as personagens pertencem ao RPG "Terra Negra"

A Semente de Prata - Parte I



O Sol escondia-se no horizonte, frente a frente consigo. A visão do pôr-do-sol era igualmente bela e melancólica, e enchia o espírito de suspiros contidos.
Sentada no jardim do palácio, Divyn aguardava o seu cavaleiro andante. Lançou um olhar ao bosque. Urië chegava sempre por entre as árvores, vindo de um algures que ela ainda não descobrira onde era, apesar de já ter vagueado por ali, em busca de um portal, uma passagem secreta, um túnel… qualquer coisa. Soltou um dos suspiros que o pôr-do-sol fomentara.
Quando do astro rei sobrava somente aquele clarão alaranjado que tinge os céus, a jovem elfo ergueu-se e sacudiu as calças. Talvez ele não pudesse vir, talvez não soubesse sequer que dia era aquele. Regressou então para o interior do palácio, onde a família a esperava para uma pequena festa simbólica. Quando os abraços, os beijos e as felicitações terminaram, Divyn subiu para o quarto, de coração pesado. Ele não viera mesmo.
Sentou-se à beira da cama, mirando as vidraças fechadas através das quais as estrelas a espreitavam, cintilando segredos. Elas sabiam qualquer coisa, percebia-o no seu tremeluzir.
A elfo resmungava para si, quando um relinchar, vindo lá de fora, lhe chamou a atenção. Ergueu-se de um salto e por um triz não se estatelou, quando o pé ficou preso no tapete, ao correr para a varanda. Por vezes conseguia ser tão desastrada quanto a mãe.
Abriu as vidraças de par em par e debruçou-se no parapeito. Lá em baixo, um bonito equídeo de pêlo de prata aguardava-a, expectante. O chifre incrustado na fronte era da cor do marfim ao luar. O unicórnio dobrou ligeiramente uma das patas da frente e fez-lhe uma vénia respeitosa.
– Estás atrasado, meu príncipe – notou a jovem. No entanto, a sua má disposição fora substituída por um bonito sorriso.
“Alguns contratempos detiveram-me, bela donzela”. A voz dele ecoou-lhe na mente, suave e contudo firme, revelando uma força que o seu aspecto delicado escondia. “Posso pedir-te para que desças? Se não puderes, não irei insistir. Deves estar cansada e a preparares-te para dormir…”
Uma risada fresca escapou-se-lhe por entre os lábios rosados.
– Tolo! Vou já descer, não te preocupes – garantiu, já a voltar costas e a correr de regresso ao quarto. Pegou só num xaile leve que pôs sobre as costas e desceu. Ele já a esperava junto à entrada do jardim, quando ela passou a porta e se lançou para ele, abraçando-o pelo pescoço esguio. Acariciou-lhe a crina que parecia seda e beijou-lhe o pêlo entre os olhos azuis.
Ele recuou um passo, quando Divyn o largou, e baixou-se um pouco de forma a que a jovem pudesse trepar-lhe para a garupa.
“Sobe”, incentivou.

Deixou-se levar por entre o bosque, até junto de uma velha árvore de tronco encarquilhado e ramos nus. Pousado nela, um mocho anão observava-os, sem medo. Inclinou um pouco a cabeça.
Quando o unicórnio se voltou a baixar, ela desmontou.
– É a partir daqui que vais para o teu mundo? – perguntou a elfo, curiosa.
"Contigo sim" disse, aproximando-se da árvore. Depois de a examinar, inclinou a cabeça, até o corno tocar num nó específico.
Sem aviso, a madeira gemeu. A casca do tronco estalou, e os ramos debruçaram-se sobre eles, como terríveis garras de bruxa, que se enterraram na terra. Estavam encurralados.
Divyn chegou-se mais para ele, assustada. Lembravam duas aves engaioladas.
– Urië – sussurrou, quando os ramos começaram a reluzir no mesmo tom que o luar.
“É melhor fechares os olhos” recomendou. “Há quem não goste de assistir à passagem”.
Abanou a cabeça. Não. Ela queria ver até o mais pequeno pormenor, absorver tudo e compreender.
A noite começou a diluir-se, como se fosse uma imagem reflectida num espelho de água. Por um momento, as estrelas desapareceram, as árvores desvaneceram-se, os sons apagaram-se. Susteve a respiração, quando o solo lhe raspou nas solas dos sapatos, mutando a sua consistência.
Aos poucos, um perfume fresco serpenteou em seu redor, como um feitiço, enquanto o cantar de água corrente a alcançava. Os ramos retorcidos quebraram-se com o som do pio de um rouxinol e desfizeram-se em partículas tão pequenas que logo as deixou de conseguir ver. E a atenção focou-se no novo céu.
Ali também era noite cerrada. Apesar de as estrelas cintilarem da mesma forma, as constelações eram outras e o ambiente parecia estranhamente leve, o ar mais puro. Inspirou fundo.
O toque suave de uma mão de encontro à sua fê-la baixar o olhar. Constatou de imediato que já não estavam num bosque, mas sim no topo de uma colina. Lá em baixo, pequenos cursos de água corriam para destino incerto, rumorejando entre si numa língua líquida. Muitos pontos brilhantes esvoaçavam um pouco acima das águas e entre a relva, como se metade das estrelas do céu tivesse caído. E ao longe, para completar a paisagem digna de ser gravada em tela, erguia-se um belo palácio de cristal, cujos minaretes reflectiam o luar.
– É tão lindo – murmurou, quase não conseguindo acreditar. – Trouxeste-me ao paraíso?
Desviou o olhar para o homem, e não o unicórnio, que estava agora ao seu lado. Uma estranha beleza reflectia-se do seu cabelo cor de luar; da pele sem rugas, como que esculpida em mármore; dos olhos cinzentos em forma de amêndoa e sobrancelhas finas. Parecia um anjo a quem tinham roubado as asas. Sentia-se pequena ao lado dele, e feia.
"Tola" os pensamentos dele chegaram até si. Urië era mudo, e o esforço que fazia para conseguir falar com ela daquela forma martirizava-o. Ele é que era o tolo!
"Hoje não te vou levar ali" apontou o palácio. "Mas sim ali".
Fê-la dar meia volta.
Se o espanto fosse contagioso, tudo em seu redor teria ficado estupefacto. A colina fazia parte da orla de um bosque de árvores baixas, todas elas da mesma espécie. Porém o mais notável eram as copas espessas, repletas de folhas de prata.

Nota:

Urië © me

Ambas as personagens pertencem ao RPG "Terra Negra"

segunda-feira, 29 de abril de 2013

O Urso e o Lobo

Magic Forest, by Andarin


O Sol escondia-se entre as copas das árvores, sombreando a floresta, contudo a caçada ainda não terminara. O rosnar de um enorme urso pardo vibrou em redor e fez Bahinil escrutinar a vegetação, enquanto os dedos se crispavam na longa lança. Aquele animal já atacara três homens da tribo do seu cônjuge, ficando um deles mortalmente ferido. Tinham que acabar com ele.
Avançou com passos leves, saltando sobre as raízes que se contorciam fora da terra. Procurou pegadas de urso, marcas de garras nos troncos, dejectos que demarcassem a sua passagem, contudo a área estava limpa. Demasiado.
Resmungou para si e baixou-se junto a uma marca. Tocou-lhe ao de leve com as pontas dos dedos da mão livre, mas apercebeu-se logo de que não poderia ser a pegada de um urso, apesar do tamanho.
Um leve restolhar na vegetação fê-la abrir muito os olhos azuis, ao aperceber-se do erro que cometera ao abstrair-se do resto da floresta por meros segundos.
Num balanço súbito, varreu o ar com a ponta da lança, antes de encarar um enorme lobo de pêlo e orbes castanhos, que mirou a arma por um instante, antes de a encarar.
– Pelos deuses, Dracil – notou Bahinil, retomando a respiração. – Pregaste-me um susto. Não sabias fazer um pouco mais de ruído?
O lobo abanou a cabeça, sem tirar os olhos dela.
“Não devias ter vindo. O teu lugar é na aldeia.”
– O tanas. Estava preocupada contigo e com o nosso filho. Partiram da tribo ao raiar da aurora e não voltaram até agora – acusou, baixando a lâmina.
“Porque ainda não encontrámos o urso. Perdemos-lhe o rasto. E o teu cheiro, no meio disto, não está a ajudar nada” comentou, erguendo o nariz e farejando o ar.
O esgar de irritação dela pareceu não afectar o lobo gigante.
“Ele não está longe. Volta para a tribo” enfatizou, antes de lhe virar a cauda, preparando-se para voltar a entrar na floresta.
– Seu lobo presunçoso de uma figa… – rosnou para si, apesar de saber que ele ouviria. – Vais ficar um mês em abstine…
O resto das palavras foram aniquiladas por um rosnar tremendo que quase lhe perfurou os tímpanos. Acocorou-se a tempo de evitar uma patada de garras em riste, que ainda lhe arrancou meia dúzia de cabelos.
Dracil aproveitou o espaço livre acima da cabeça da mulher para se impulsionar contra o urso, de mandíbulas já abertas. Os dentes afiados fincaram-se no antebraço peludo do animal, arrancando-lhe um rosnar mais forte, onde foi impossível distinguir a dor da raiva.
Bahinil levantou-se depressa e afastou-se para uma distância segura onde pôde analisar a cena. O lobo foi arremessado contra um tronco, deixando escapar um ganido de dor, mas não tardou a recompor-se, a tempo de se esquivar de outra investida impulsiva que arrancou pedaços de casca à árvore. Os olhos negros do urso seguiram o movimento de Dracil, enquanto as narinas se dilatavam. Arreganhou os dentes e investiu para o lobo, tentando abocanhar-lhe o pescoço.
“Foge daqui, Bahinil!” urgiu ainda assim uma voz, dentro da cabeça dela.
– Não – sussurrou em resposta, antes de cerrar os dentes e investir contra o urso.
A lâmina da lança atingiu-o no flanco esquerdo, perfurando-lhe a pele espessa e a camada de gordura. O urro que lhe arrancou infiltrou-se na alma e fê-la hesitar um momento, o que foi o suficiente para que uma patada a atingisse num ombro e a atirasse ao chão.
Ao vê-la por terra, o rosnar do lobo subiu de tom e este atirou-se sobre o possante animal. Ambos tombaram, no entanto os dentes afiados do predador afincaram-se na garganta do urso, constringindo-lhe a traqueia com intenção de o sufocar. No entanto o enorme animal não tinha intenções de se deixar matar.
Vindo de longe, um uivo longo interpôs-se entre os rosnares do urso. No momento seguinte, como se aquilo tivesse sido uma distracção, o lobo era novamente arremessado pelo ar com toda a força. Uma das patas dianteiras fora ferida pelas garras da besta, no desespero de se libertar das mandíbulas do lobo.
O urso ofegou, depois de se erguer sobre as quatro patas, com a lança ainda ferrada no corpo. Enquanto o fazia, estudou qual o melhor alvo a atacar, e a escolhida foi Bahinil, cujo cabelo branco já se manchara de vermelho.
Com um ronco de ameaça, o animal deu um passo para a presa, que não tardara a desembainhar a adaga presa à bota de couro. Apontou-lha, enquanto recuava um passo lento. Lançou uma mirada a Dracil, pelos cantos olhos. Atordoado, ele ainda se recompunha da queda.
Inspirou fundo e recuou um novo passo, antes de se precipitar por entre as árvores numa corrida desenfreada. O urso não tardou um segundo a partir no seu encalço, quebrando arbustos e ramos mais baixos à passagem da sua forma corpulenta.
– Anda, segue-me – sussurrou Bahinil, por entre os dentes.
No entanto, mal o disse, ele parou de a perseguir, desviando a sua rota e desaparecendo entre a vegetação.
– Filho da mãe – sussurrou depois de parar, ofegante.
A escuridão que caíra demasiado depressa tomava conta das sombras como uma mãe, encobrindo nelas o grande animal.
Usou aquele momento para recuperar o fôlego e pensar. O urso parecia ser mais inteligente do que aquilo que era normal, não podia precipitar-se. Apurou então os ouvidos. Conseguia escutar um restolhar à distância, talvez fruto da lança que o animal trazia presa em si. Quando deixasse de a ouvir, era sinal de que ele parara e esperava que fosse a presa a alcançá-lo, como acontecera momentos atrás. Como previra, não tardou a que fosse só o ruído da noite a sussurrar mais alto.
Trocou a adaga de mão e pegou num pau comprido. Raspou-lhe uma das extremidade para improvisar outra lança e partiu em busca do predador, com mais cautela do que antes, atenta a qualquer roçagar ou a um respirar mais ruidoso. Para além disso, fez por ignorar o ardor na nuca.
Após algum tempo, escutou um ruído furtivo atrás de si. Fingiu ignorá-lo e continuou em frente, esperando dar confiança suficiente à besta para se aproximar um pouco mais.
“Estou perto, o Cedric está à tua frente” sussurrou a voz de Dracil, como se houvesse a possibilidade de lhes ouvirem os pensamentos. “Continua a avançar.”
Bahinil engoliu em seco, expectante, e fê-lo, até não poder ignorar mais e olhar para trás. A primeira coisa que descortinou entre a vegetação foi o brilho dos orbes negros, e só depois o corpo que se camuflava com o anoitecer. Quando o urso percebeu que ela dera pela sua presença, rosnou e lançou-se sobre ela.
“Baixa-te, Mãe!”
O grito estremeceu-lhe a cabeça, já de si meia atordoada. Hesitou um instante, antes de se acocorar. Outro lobo, um pouco menos corpulento que o primeiro, lançou-se sobre o urso com toda a força, tombando-o. O chão estremeceu sob os pés de Bahinil, com o impacto.
Não tardou a que o pai se juntasse ao filho, de dentes arreganhados, e juntos combateram o enorme urso. O lobo mais pequeno conseguiu recuperar a lança e devolveu-a a Bahinil enquanto Dracil ocupava o urso com ataques esquivos que não eram de todo mortais mas também não o deixavam fugir. O seu plano era exauri-lo, até se tornar numa presa fácil.
Quando o inimigo estava já mais lento, Bahinil sopesou a lança na mão e atentou os movimentos incessantes do enorme animal. Respirou fundo antes de dar balançou ao braço, fazer pontaria, e arremessar a arma. A lança cortou o ar e cravou-se no peito do urso. Não estava certa de que lhe tivesse acertado no coração, contudo após mais alguns segundos o enorme animal tombou e não se voltou a erguer. O lobo mais pequeno estava para lhe abocanhar o pescoço quando, de súbito, toda a enorme forma refulgiu, iluminando a noite com um azul espectral, antes de rebentar em múltiplos flocos de luz.
Dracil ergueu o nariz e voltou a farejar o ar. Uma dessas partículas que lembrava um pirilampo tocou-lhe no nariz e, acto feito, rebentou em partículas ainda mais pequenas, que se extinguiram pouco depois, deixando-os na penumbra. Do corpo do urso pardo não havia sinal.
– O que foi isto? – murmurou Bahinil, estupefacta.
Enquanto isso, o corpo dos dois lobos sofrera uma metamorfose abrupta, até retomarem à forma humana.
– Bruxaria, ou um monte de espíritos da floresta que decidiu divertir-se à nossa conta. Estou inclinado para a última hipótese – retorquiu Dracil, de mau humor. Era um homem alto, de porte intimidante para os homens e apelativo às mulheres. – E tu arriscaste-te demasiado. Cheiras a sangue…
– Foi só uma cabeçada – notou Bahinil, levando uma mão à nuca. – E tu, que tens o braço todo estraçalhado?
– São só uns arranhões, exagerada – defendeu-se, flectindo o braço ferido e contendo um gemido de dor, para não dar parte de fraco.
Enquanto discutiam, o filho aproximou-se deles e passou os braços sobre os ombros de ambos.
– Vá, não discutam, que estou faminto. Vamos antes voltar para a aldeia. Estou mortinho por provar o bolo que a mãe fez para o teu aniversário.
Dracil piscou os olhos e mirou a esposa, muito espantado.
– Fizeste um bolo para mim?
– Não – fungou Bahinil, indo recuperar a lança. – E, já agora, vais dormir na rua.
Cedric deu uma risada animada, enquanto olhava o pai, de soslaio, esperando uma reacção. E teve-a.
Dracil alcançou-a com passadas largas, agarrou-lhe o rosto sem aviso, e roubou-lhe um beijo. Antes que Bahinil pudesse barafustar, pegou nela e lançou-a sobre um ombro.
– Vá, vamos lá comer esse bolo – disse, dando-lhe uma palmada no traseiro.
Bahinil corou que nem um tomate e deu-lhe uma palmada nas costas, enquanto esperneava.
– Põe-me no chão, rafeiro! Vou arrancar-te os lábios à dentada!
Dracil soltou uma gargalhada mais descontraída. Adorava deixá-la fora de si.


Nota:

Cedric & Dracil © Morganadu Lac (Ana Santo)
Bahinil © me

Ambas as personagens pertencem ao RPG  "Terra Negra".

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Da Cecile, com Amor...


“Lá fora, a noite caía tempestuosa. A chuva fustigava as altas janelas e os belos vitrais feitos em honra do rei e da rainha do Submundo abanavam sob o impacto do vento. Jihm soltou um suspiro cansado e passou uma mão pelos olhos que teimavam em fechar-se, como se as pálpebras pesassem uma tonelada. Já era tarde, e a sua família esperava-o. Nenhum deles previra que se demorasse muito mais que o normal, no seu próprio dia de aniversário. Mas trabalho era trabalho.

Passou a penugem da pena pelo queixo, enquanto observava o inventário de livros que a bibliotecária mestre o deixara a preencher. Não podia sair dali enquanto não o terminasse. Contudo, ainda faltavam tantas páginas! Soltou um gemido angustiado que fez a chama da candeia estremecer em solidariedade para com ele. Por fim, voltou a pegar nos pergaminhos e levantou-se da cadeira estofada e demasiado confortável, para ir passar revista aos livros.

A lareira de fogo mágico crepitava, lançando vagas de calor que muitos leitores nocturnos apreciavam, principalmente em dias como aquele. Além disso, já ouvira rumores de que alguns dos príncipes gostavam daquele espaço para dar asas a outros divertimentos. Felizmente nunca testemunhara mais do que olhares comprometidos, e um ou outro beijo.

Quando alcançou o lado norte da biblioteca real, levantou o braço e iluminou uma prateleira ao nível do seu peito, onde repousavam três dos quatro exemplares que ele próprio escrevera. Sorriu com um orgulho de pai e passou revista à restante estante.

As luzes oscilavam, criando sombras que o perseguiam ao longo dos corredores formados pelas gigantescas estantes. Rastejavam ao longo do chão, envolvendo-se com a própria silhueta do bibliotecário, e tentavam saltar-lhe em cima a partir das prateleiras mais altas. Num instante súbito quase todas se extinguiram, quando um descomunal relâmpado iluminou a biblioteca. Jihm estremeceu e desviou o olhar para as janelas, a tempo de ver um vulto cortar a luz, antes de desaparecer com o extinguir da luz. O ribombar do trovão não se fez esperar, parecendo fazer oscilar os alicerces do palácio.

 – Pelos deuses – sussurrou, recuando um passo. – O que foi aquilo?

“Aquilo?”

A pergunta ecoou em redor, por mais tempo do que o suposto, impedindo-se de ser absorvida pelos livros. A voz que a pronunciara era suave, quase melíflua, e, ao mesmo tempo, terrivelmente assustadora. Os cabelos da nuca do rapaz eriçaram-se, mas foi só quando o fogo mágico da lareira se apagou que Jihm percebeu que deveria ter fugido antes, pois agora já não teria tempo.

De um só ímpeto, a escuridão encurralou-o dentro de um pequeno círculo. A sua protecção era apenas concedida pela chama que tremeluzia dentro da candeia, por isso ergueu-a acima da cabeça, tentando aumentar o raio que o separava da negrura. Contudo, a sua posição tinha um ponto fraco do qual o seu atacante se aproveitou.

Usando a zona de sombra no topo da candeia, um tentáculo de escuridão serpenteou esquivamente até à sua mão. O toque veio com a dor fina de uma picada, que o fez soltar a candeia.

O estilhaçar não se equiparou ao barulho do trovão, contudo foi como se o seu coração parasse de bater. A chama durou apenas um instante de segundo, antes de as sombras se abaterem sobre Jihm, tragando-o.”

Piscou os olhos e levantou o olhar para a namorada, que o mirava com uma expectativa de criança perante uma suposta obra-prima. O cabelo cor de fogo e as sardas que lhe pintalgavam as bochechas realçavam-se sob a luz das velas, e os olhos verdes brilhavam.

– Acaba assim?

– É só o princípio. Para o ano dou-te mais um bocadinho da história. Quando tiveres aí uns 300 anos terás o fim – disse ela, com um sorriso amplo. – Mas não vais morrer, é tudo o que te posso adiantar.

Jihm não conseguiu evitar rir-se. Pousou as páginas escritas numa letra gorducha e certinha, mostrando o quão ponderadas tinham sido as palavras. E, pela falta de erros ortográficos ou texto riscado, ele supunha que Cecile escrevera e revira enésimas vezes aquele pequeno pedaço de história.

– A partir de agora, vou esperar ansiosamente pelo meu aniversário, só para saber as tortuosidades que me vais fazer – notou, esticando uma mão para o rosto macio dela. – Obrigado, meu amor.

Cecile corou um pouco e chegou-se mais para ele, roubando-lhe um beijo terno.

– Parabéns, meu escritor – sussurrou, deixando o nariz roçar-se no dele.


Lantern 02, by Snowfake

Nota:

Cecile © me

Ambas as personagens pertencem ao RPG  "Terra Negra".


domingo, 31 de março de 2013

É Conceito de Voz Poente

Sunrise by the Ocean, by Vladimir Kush

É conceito de voz poente
O explicado que ecoa
Sob as lascas, senciente
Invólucro, casca em proa.

Quebra o olho, quem é
Vidro em vinho que bebe,
E rasga a definição de pé
Que oscila, tão imberbe.

Não consta o grito sineiro
Que foi e deitou-se para não ser
Quanto do sentido de permeio,
Perdido o caudal de saber.


quinta-feira, 21 de março de 2013

Quando o Sol se põe





Quando o Sol se põe, as estrelas gritam
Com voz de soprano sustido;
O céu revolve-se, as entranhas regurgitam
Da terra o calor colhido.

O olhar fenece e é dada a mão,
Pele de nada junta, dedos entrelaçados,
Entre a sombra e a escuridão.

O pio da noite flui no evitar do artifício
Luciferino que é do mundo suplício.

E a senhora do véu branco despe-se de si.

domingo, 10 de março de 2013

Lágrima


Longe leva a lágrima
O vento ledo de alguém.
Lento lobriga a lavra,
Onde deve cair além.

Que se empluma rebento
Sem semente se é nada
Levado em mãos de vento.
É pela terra tragada.

E a água guarda-a no leito,
Líquido de cerne em berço
Fátuo e amparo de trejeito.

Que querendo por não querer,
A lágrima é resquício que teço
Para o mundo colher.

24 - Lágrima

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Donde Sopra a Alma


Donde sopra a alma
Os vagares do sonho,
Sopra o que foi, suponho,
E o que será;
Que o vento é segredo,
E as partículas do tempo
Andam cá e lá.


terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Vogais Asas da Borboleta

The Ship, Salvador Dalí (1943)

Vogais asas da borboleta
Branca escuma que te conhece
Encanto dos anos idos em água
Vinda escondida que é prece

E sombreias balanços tontos
Tantos que a febre fenece
De reza que sereia santa
É ela que te canta a prece

Ladainha que vem envolta
Ao largo do que prende terra
E oferece mar de olhos
Chorosos a quem deserda

Da vida o vento cicia
Lendas dos cabelos véus soltos
Do teu peito de madeira
Nesses trajes revoltos

23 - Caravela

domingo, 6 de janeiro de 2013

Brisa, abraça a Montanha





Brisa, abraça
A montanha de dentes
Brancos cor de nada.
Abraça-a e salteia
Os seus bolsos de pedra
Pária e terra húmida
E insectos que arrulham
Nas cavernas fundas.

Traz contigo o ouro
Que te adorna o ar
Livre, leve, louco
De voar e amor
Dos sonhos idos,
E dos que irão ficar
Embebidos qual suspiro
De jóia em ti.







22 - Abraço