terça-feira, 28 de julho de 2009

Pluma Escarlate

Parte III

Uma luz difusa entrava-lhe pelas pálpebras fechadas, acordando-a de forma lenta e suave. Todavia parecia que alguém lhe tentava arrancar o coração ao mesmo tempo que isto acontecia. Obrigou-se a abrir os olhos, pronta a desembainhar a espada e esquartejar o estupor que lhe causava a dor.
Ao fazê-lo, a luz laranja de um candeeiro ofuscou-a momentaneamente, mas o que vira nesse relance de segundo não lhe agradara. Quando se habituou à luz, confirmou as suas suspeitas pouco felizes. Estava deitada num camarote pequeno, aconchegada numa cama confortável. Sentado ao seu lado, um homem de meia-idade observava-a atentamente, como se esperasse que ela desse um salto e fugisse.
No momento em que os seus olhos se cruzaram, ele levantou-se da cadeira e dirigiu-se para a porta do camarote. Saiu e fechou-a à chave sem uma palavra.
Alexandra desviou o cobertor que a aquecia e tentou levantar-se, mas uma dor invadiu-a como um relâmpago, cortando-lhe a respiração. Deixou-se cair para trás, mordendo os lábios para abafar qualquer género de lamento. Começava a lembrar-se do que acontecera. O denso nevoeiro, o combate com o capitão Henrique e a flecha…
Olhou para si e para o seu estado lastimoso de vulnerabilidade. Alguém a tinha despido e colocado ligaduras em redor do tronco. Sentiu a sua face ganhar um tom rubro de vergonha e fúria.
Uma chave voltou a rodar na fechadura. Os seus sagazes olhos azuis fitaram a porta, enquanto ela se abria sem pressas. Um olhar simpático fitou-a daquele local. Era o capitão Henrique.
- Posso?
- Não sou eu a comandante do navio, não é a mim que tem de pedir se pode ou não – rosnou Alexandra, desviando o olhar para o tecto.
- Aceito isso como um sim, capitã Vasconcelos – declarou com um encolher de ombros, fechando a porta e avançando até à cadeira onde antes estivera o outro homem acomodado.
Durante alguns segundos impôs-se o silêncio. Alexandra não se dignava a falar-lhe e Henrique simplesmente esperava que ela o fizesse. Pairava o impasse no camarote. No entanto, numa questão de impulsividade, ele quebrou-se.
- O que vão fazer comigo? – A sua pergunta era autoritária, não queria dar parte de fraca. Continuou a olhar para as madeiras bem tratadas do navio, irresolutamente.
- Isso depende do que me contar.
- Sua escória mesquinha… está à espera que eu traia a minha tripulação, não é?! Prefiro morrer a vê-la nas suas mãos asquerosas…
- Imagino que prefira – interrompeu o capitão, pacientemente. – Mas não é isso que quero ouvir.
Alexandra mirou-o de soslaio. A desconfiança marcava-lhe pequenas rugas na testa. Se não era aquilo que o homem queria saber, então o que seria? Não via mais nenhum motivo de conversa entre eles.
- Gostava que me esclarecesse do porquê destes ataques. Há dois dias atrás fez graves acusações ao Marquês de Tomar, acusações essas em que não vejo fundamentos.
Os olhos castanhos do capitão fitaram os seus de forma inquiridora.
- A que ataques se refere? – Perguntou a capitã do Flecha Dourada, tomando uma atitude de plena ignorância, desviando o olhar.
- Aos que o seu navio perpetua às embarcações portuguesas.
- Não sei o que quer dizer com isso. Penso já ter referido o facto de não ter sido o meu navio a fazê-lo. Foram os seus amigos! – Uma dor perpassou-lhe o peito ao elevar a voz, o que a fez tentar acalmar-se e mentalizar-se de que não valeria de nada começar aos gritos. Só pioraria a situação em todos os sentidos. Tinha que se comportar. Talvez assim conseguisse congeminar uma forma de escapar.
- Eu não confraternizo com piratas…
- Mas o Marquês confraterniza! Com piratas e espanhóis que estão mortinhos para devorar Portugal – rosnou, com um esgar de raiva. – Não espero obviamente que acredite na minha palavra, mas é esta e mais nenhuma. Agora pare de me importunar com perguntas inutilmente hipócritas.
- Tem provas do que está a afirmar?
- Não acha que se tivesse provas não as teria levado de imediato a El-Rei?! Pouparia tempo, dinheiro e tripulação! – Quase gritou, com os olhos a coriscarem. – Agora, por favor, saia. Não me sinto com disposição para isto.
- Não, ainda não vou sair. Quero conversar consigo sobre o porquê de estar deitada nessa cama.
- Talvez porque fui capturada? – Ironizou com um revirar de olhos.
- Também. Então falemos do porquê de ter sido capturada, do porquê dessa flecha lhe ter acertado exactamente em si quando a minha nau estava a transbordar de guardas – declarou com um sorriso, cruzando as pernas.
- Não está a insinuar que alguém da minha tripulação me tentou matar, pois não?
- Talvez até esteja – insistiu sobre a indignação de Alexandra. Levantou-se e disse as suas últimas palavras: – Pense nisso, capitã. Dar-lhe-ei o tempo que precisar.
- Desapareça! – Gritou a jovem mulher, erguendo o tronco como se fosse saltar da cama para o espancar. Aquelas maneiras arrogantes enjoavam-na e aquelas insinuações eram descomunais.
- Como queira, mademoiselle – disse, com uma semi-vénia. – Mas pense bem. E por favor, tenha consideração pelo trabalho que o doutor teve. Não queremos que a ferida abra.
- Para me poderem enforcar ainda viva?
- Sinceramente preferia que isso não acontecesse – murmurou, voltando-lhe as costas. E, como pedido, desapareceu porta fora.
Alexandra deitou-se para trás com dificuldade e, por fim, respirou fundo. O que pensava aquele idiota que estava a fazer? Tentar virar a capitã contra a tripulação era um truque infame e muito sujo. Fechou os olhos. Estava demasiado cansada.
Três sóis nasceram depois desta pequena conversa entre capitães. Em nenhum dos dias fora permitida a saída de Alexandra do camarote. Foram-lhe disponibilizadas as suas antigas vestes, lavadas e com algumas costuras. O médico fora visitá-la algumas vezes mas a capitã recusara-se ameaçadoramente a ser vista.
- Parece uma criança – reprovara Henrique, num desses martirizantes dias, o que lhe valera um olhar assassino.
O crepúsculo chegara e Alexandra escutou o capitão entrar com um pequeno tabuleiro de comida no camarote. Era o único que a ia visitar, para além do médico, e só ele tentava com afinco falar consigo.
- Quando é que estão com intenção de me envenenar? – Perguntou sarcasticamente, sem o olhar. Estava sentada junto aos vidros da janela, observando o mar que se deixava navegar por aquela nau amaldiçoada.
Assim, não viu o revirar de olhos de Henrique, só ouviu o seu suspirar impaciente.
- Ninguém a quer envenenar.
- Ah pois é, querem-me enforcar. Agradeço a sua gentileza em me relembrar.
Estava mais calma agora. Já se habituara à ideia de que o cadafalso esperava por si. Por mais que navegasse, nunca fora uma verdadeira pirata, não crescia em si a necessidade de fuga, só a de justiça. E faria todos os possíveis para dar um fim a tudo aquilo, antes de morrer.
- Se é assim que pensa…
Levou o tabuleiro até a uma pequeníssima mesa-de-cabeceira e pousou-o. Nele repousava um rústico copo d’água, uma sopa de bom aspecto e um bocado de pão com carne seca. Era mais que muitos dos marinheiros do navio comiam, mas Alexandra não agradecia. Não queria que a tratassem bem. Não era uma convidada, era uma prisioneira.
- Diga-me mais uma vez – pediu o capitão – o porquê dos seus actos.
- Estou a defender a minha pátria, a fazer justiça pelo meu pai – continuou a olhar o mar aquando o seu murmúrio quase inaudível.
O capitão Henrique nada disse e o silêncio que se instalara entre a sua resposta e o homem fê-la olhar em volta. O camarote estava espantosamente vazio.
Aproximou-se do tabuleiro e pegou no copo d’água. Não chegou a levá-lo aos lábios porque um pequeno objecto amarelado lhe chamou a atenção. Era um pedaço de pergaminho velho que tinha permanecido sossegadamente escondido debaixo do copo. Segurou-o entre os dedos, de sobrancelhas franzidas.
***
Henrique dirigiu-se com passos lentos e pensativos para a proa. Encostou-se à amurada e observou nostalgicamente o clarão alaranjado, mas difuso, que marcava o limiar entre o pôr-do-sol e a noite.
Perguntava-se se os seus actos eram os correctos, ou se estaria a cavar a sua própria sepultura mesmo rente aos pés.
As palavras de Alexandra não lhe soavam a mentiras rebuscadas, muito pelo contrário. Mas não havia forma de se provar a verdade. Ela era considerada pirata, nunca seria ouvida, e mesmo que não fosse, era uma mulher, a quem raramente davam crédito. Ajudá-la poderia significar a forca para si também. No entanto, a sua consciência deixá-lo-ia sossegado noite após noite, depois de a ver enforcada, sem mesmo ter a verdade nas suas mãos? A certeza da sua culpa? A resposta era simples... simplesmente não deixaria.
Levou a mão ao bolso e tirou de lá uma pequena pena cortada rente à penugem. Era vermelha como o sangue que lhe corria nas veias, como a vida que se derramava na lâmina da sua espada sempre que combatia, como um espírito que se esvai quando a sua honra não é reposta.
A escuridão tinha tomado já conta do convés e uns brilhos espelhavam-se já pelo céu nocturno, quando o capitão Henrique deu a sua decisão por totalmente tomada. Não desonraria a sua pátria com actos incalculados, as leis da sua alma manter-se-iam. E o que elas lhe diziam era claro. Todos têm o direito de provar o seu direito à liberdade.
Dirigiu-se ao seu camarote onde deixou que a noite se alongasse. As horas passavam lentas sob a vaga ondulação, mas nelas sorria a esperança.
Por fim, quando lhe pareceu ser o momento exacto, levantou-se e saiu, determinado a fazer o que tinha de ser feito. Com passos calculados de cuidadosos que eram, aproximou-se do marinheiro adormecido que supostamente guardava as armas da Pluma Escarlate: uma mortal espada criada pelos melhores forjadores franceses, e uma pequena adaga de lâmina um pouco curvilínea, com inscrições em Italiano.
O soldado descansava com a cabeça descaída sobre o ombro e a boca semi-aberta num ressonar ronronante. A espada e a adaga estavam abandonadas ao seu lado.
«Isto é que é cumprir ordens…», pensou o capitão, ironicamente, com um revirar de olhos, mas fora bom que assim acontecesse.
Baixou-se lentamente para apanhar as armas. Os seus joelhos estalaram inconvenientemente, fazendo-o conter a respiração. Mas fora uma preocupação vã. O homem não acordaria mesmo que uma trompa bárbara fosse entoada junto dos seus ouvidos.
Resgatou as armas rapidamente e afastou-se em direcção ao camarote da capitã Vasconcelos. Rodou a maçaneta devagar para que não chiasse ruidosamente e abriu-o. O escuro tomava conta do compartimento.
- Capitã? – Sussurrou para o seu interior. Nada conseguia discernir no negrume. – Alexandra?
- Penso não lhe ter dado autorização para me tratar pelo nome próprio, capitão Henrique. – A sua voz era bastante calma o que amenizava a situação. Vinha do seu lado direito.
Perscrutou a escuridão com mais atenção. Junto a si estava uma silhueta esguia, talvez elegante, numa perfeita camuflagem que era as suas vestes. Os seus olhos brilhavam densos num enigma intransponível.
- Peço-lhe as minhas mais sinceras desculpas. Fi-lo inconscientemente – murmurou o jovem capitão desviando o olhar.
- Não peça o que não lamenta, capitão – declarou Alexandra com um sorriso. – Gostava de conversar consigo sobre tudo isto, mas dir-me-á que não temos tempo. Estou correcta?
- Sim, está. Tome, tenho aqui as suas armas e preparei um bote dos mais pequenos para partir.
- Como vai explicar o meu desaparecimento e do barco? – A desconfiança dava agora lugar à incredulidade. – O que lhe vai acontecer?
- Preocupe-se consigo, capitã. Tenho todos os passos planeados. Ordenei para que um dos prisioneiros fosse deixado à deriva no mar. O bote foi preparado para isso, supostamente.
- Prisioneiros?
- Ninguém do Flecha Dourada, descanse – garantiu.
Deu passagem a Alexandra enquanto esta colocava a espada e a adaga no cinto. A Lua brilhava redonda no seu oceano negro, iluminando-os vagamente. Observou-a pelo canto dos olhos. Uma mulher tão bonita e tão séria, com aquele destino nas mãos. Os anjos eram cruéis.
- Muito obrigada, capitão – disse-lhe com sinceridade. – Provar-lhe-ei a verdade. Se não o conseguir, eu própria me entregarei.
O homem ignorou-a.
- O seu navio partiu em direcção ao Sul. Se quiser poderá segui-lo. Pela manhã seguiremos para Norte. Se nos voltarmos a encontrar espero que não seja nas mesmas circunstâncias. – Levou a mão ao bolso e retirou uma pequena bússola já velha com um ponteiro em metal. Junto vinha uma pequena pena vermelha. – Penso que vá precisar disto, Pluma Escarlate.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Pluma Escarlate

Parte II

Mal se vira o Sol nascer. Um nevoeiro cerrado cobria a embarcação e tudo o que a rodeava. Não se via mais que um braço à frente da face. A única coisa que se ouvia era o casco a cortar as ondas que se abatiam sobre ele. Aquele era um ambiente traiçoeiro que os ludibriava.
- Capitã!
Alexandra olhou para o mastro principal, donde vinha o chamamento, apesar de não ver nada além da densa nébula.
- Sim, senhor Almiro?
- Aproximamo-nos de algo a pouca distância! – Gritou a voz do velhote, do vazio. – Outro navio, parece-me!
A capitã franziu as sobrancelhas. Por entre o nevoeiro não conseguiria descortinar se eram amigos ou inimigos. Não se poderiam arriscar a atacar um barco mercantil. No entanto, seria só mais um para um currículo que outros tinham forjado para eles… e podiam sempre recuar se fosse engano.
- Preparem-se para atacar! – Gritou para a sua tripulação. – Vamos abordar o navio e certificarmo-nos de que não são os homens do Marquês.
- Alexandra, isso é demasiado imprudente. Pode ser qualquer pessoa, pode mesmo ser a guarda do rei! – Alonso agarrou-lhe o braço, impedindo-a de avançar para a amurada.
- Mesmo que seja, conseguimos escapar-lhes uma vez. Podemos muito bem escapar outra. É uma questão de superioridade estratégica.
- E tens alguma estratégia? – A dúvida planava como uma ameaça feroz na voz de Alonso.
- Não, mas se não os atacarmos nós, há a forte probabilidade de serem eles a fazê-lo. E eu não quero cair, não agora que podemos estar tão perto do final.
- Que final? Do nosso final?!
Alexandra puxou o braço da mão de Alonso e afastou-se dele sem lhe responder. Não queria admitir que as suas perguntas a perturbavam.
Depressa os seus inimigos se deram a revelar. Um colosso pareceu materializar-se ao seu lado vindo de outro mundo. Pouco conseguia desvendar naquela semi-cegueira e os rostos dos marinheiros adversários eram-lhe vagos.
Por enquanto também não tinham atacado. Não sabia a razão. Estariam à espera que dessem eles o primeiro passo? Se assim era, assim o fariam.
Não hesitaram. Abordaram o outro navio de imediato e o combate começou. Alexandra ouviu armas a dispararem. Por entre aquele nevoeiro era uma loucura disparar-se uma arma! Podiam acertar na pessoa errada, num companheiro!
Desembainhou a espada afiada, mas a falta do seu brilho por entre a brancura impura do ar deu-lhe um arrepio. Considerava aquilo um muito mau prenúncio. Estariam os mares contra eles?
Ouviu algo a cortar o ar por detrás de si e virou-se rapidamente, erguendo a espada a tempo de se defender. O entrechoque do metal repercutiu-se no ar com hostilidade. Alexandra fitou a face do seu atacante, por sinal sua conhecida.
- Seja bem vinda, Capitã Vasconcelos. Tenho esperado ansiosamente por si – declarou o capitão Henrique com um sorriso sarcástico. – Demorou a chegar, mas mais vale tarde que nunca.
- É um prazer reencontrá-lo, monsieur – disse esta com uma pequena vénia trocista. – Sentia falta de um bom combate e da última vez penso que tenha ficado com algo que me pertence.
- E tem toda a razão, mademoiselle. Estimo ao saber que ainda se lembra – desferiu outro golpe ao dizer isto, fazendo Alexandra recuar por entre os homens que lutavam desenfreadamente. Pingos quentes de sangue voaram até ao seu rosto, vindos de algures. Não queria saber de quem eram. Sentia-se mutilada só de pensar que poderia pertencer a algum dos seus marujos. – E desta vez não levará a melhor, porque não desistiremos. O lugar dos criminosos é na forca.
- NÓS NÃO SOMOS CRIMINOSOS! – A sua fúria voltou a evadir-se de dentro de si, repentinamente, investindo contra o capitão sem pensar. – É a escória que vos mandou que pratica os crimes! É a escumalha daquele marquês que mata por ganância! É a ele que os espanhóis pagam para contratar corsários!
Enquanto dizia isto, a sua espada rasgava o ar, embatendo contra a lâmina da do capitão sem saber o que fazia. Estava a agir impulsivamente. Queria que ele acreditasse nas suas palavras, queria que se fizesse justiça.
Ao mesmo tempo que duelavam, os seus passos levaram-nos para uma inclinação. Estavam a subir para a proa.
Alexandra golpeava a espada do homem incansavelmente. Todavia, quando ergueu o braço para desferir outra estocada, uma incompreensível e imensa dor perpassou-lhe as costas, por entre as costelas, parecendo quase vinda do coração. Sentia-la, a lâmina pequena e aguçada de uma flecha dentro de si. Mas como fora possível acertarem-lhe tão precisamente?
Recuou, tentando ganhar forças para respirar, mas cada movimento que o seu peito fazia parecia-lhe insuportável. O capitão baixou a espada, estupefacto e incapaz de agir. Sentia-se confuso com aquela paragem brusca do combate.
Assim, Alexandra ganhou forças para fazer o que tinha de ser feito. A única forma digna de finalizar tudo aquilo.
De dentro de si soou um grito, não de dor, apesar do esforço lhe destroçar o corpo.
- Voltem ao Flecha Dourada, já! Saiam daqui!
Fincou a espada no chão para se aguentar em pé. Não sabia se a tinham escutado, no entanto não conseguia gritar novamente. O seu espírito começava a toldar-se. Nunca pensara que uma simples flecha pudesse ter tais consequências.
***
Alonso viu, impávido, os seus companheiros de mar, regressarem ao navio. Ele e mais uma dúzia tinham ficado no navio, atacando o inimigo com flechas, apesar de, por entre todo aquele nevoeiro, terem disparado poucas com receio de ferirem quem não devessem. Foram lançadas só as que tinham um alvo certo. Ele mesmo dera a ordem.
- Porque estão a regressar? – Perguntou a um marinheiro que acabara de cair ao seu lado e se levantava com rapidez.
- A capitã deu-nos essas ordens, e disse para nos pormos a andar. Eu estava ao pé dela, foi atingida por uma flecha, muito possivelmente no coração – respondeu o homem. Tinha um aspecto lastimoso, um dos braços possuía uma chaga aberta, donde escorria sangue, e não tão pouco assim.
- Não… isso não é possível – murmurou Alonso incrédulo e ao mesmo tempo chocado. Parecia não querer acreditar no que ouvia.
- Ela deu-nos uma ordem, e muitos de nós ouvimo-la. Partimos, já!
- Não a podemos deixar lá! Não…
O homem não o ouviu e afastou-se agarrado ao braço ferido. Poucos minutos depois estavam a afastar-se da nau da guarda. Alonso continuava perto da amurada a vê-la ficar cada vez mais distante. Do seu único olho derramava-se uma pequena e dissimulada lágrima. Por vezes o que estava certo era demasiado doloroso.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Peste



Não te sorri o olhar fosco
Esfolado em agulhas que te aguilhoam.
Não te sorri que nasceu morto,
Aborto de garras estendidas. Que te doam,
As mágoas da luz que a ele deste,
Quando a ti arranhar a negra peste.

Que o abortinho ri-se…
Ai a peste tem humor vítreo estilhaçado!
Rasga o ventre que o sustém e ri-se, ri-se,
Ri-se o cego aborto danado,
Vidro a vidro, vontade férrea e sabor
De sangue rubro e tua dor.

Então, rejeita-lo da corpórea mente, alma andante.
Rejeita-lo em forma de te rejeitares.
Que agora ele não ri, sorri a ti, seu amante,
Que o susténs sempre em ajeitares
Ternos, de dor mal contida.

Um brinde à peste que te alimenta, de putrefacta vida.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Acróstico II



P
or dias singrou esta ilusão,
Rompante a dentro que era viva.
Estridente o gralhar que dizia não,
Se não vista, era proscrita,
Tudo e nada, sem coração,
Ilusão, oh! Se era a dita,
Gosto amargo, veneno, santo pão,
Impar descoro, a desta magia,
Origem e pecado de perdição
(Que é essa tua fantasia).

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Pluma Escarlate

(Conto que escrevi há cerca de um ano, para participar no "concurso" Pulp Fiction à portuguesa, da SdE e como nada mais há a fazer com ele... aqui fica, para quem quiser ler)

Parte I

A nau navegava em alto mar, enquanto a sua bandeira se balanceava livremente pela brisa marítima. O seu fundo era negro e sobre ele repousava um símbolo branco, uma caveira. Era um barco pirata.
Pluma Escarlate, de verdadeiro nome Alexandra Vasconcelos, caminhou pelo convés do seu navio, Flecha Dourada, observando os inimigos que se mantinham a uma distância considerável. Os canhões estavam carregados e prontos a disparar. Afundá-los-iam sem piedade. Ninguém mais tinha o direito de correr aquele mar com intuito de roubar outros barcos, muito menos os malditos corsários do Marquês de Tomar.
- Alonso! – Gritou alto, num tom de comando, sem tirar os olhos do navio que se encontrava a menos de duas milhas deles.
Um homem de paleta e uma cicatriz que se derramava pelo lado esquerdo da face aproximou-se com passos rápidos. O seu único olho era de um verde forte e perscrutou a sua capitã meditativamente.
- O que pretendes fazer? – Perguntou, desviando o olhar para o navio longínquo.
- O que achas? O traidor do Marquês há-de parar de mandar barcos para atacarem as caravelas que partem de Lisboa. Malditos espanhóis… – rosnou, com um esgar de raiva.
O Marquês de Tomar era um homem rico que vivia nos arredores de Sines. Conhecido por ser perigoso, um inimigo que ninguém gostaria de ganhar. Todavia, Alexandra repugnava-se com o que ele fazia ao seu próprio país, a mando de Espanha. E antes dela se repugnar, repugnara-se o seu pai, o Conde Vasconcelos. Fora tal a sua revolta que acabara na forca, e as suas terras confiscadas.
- Quais são as ordens?
- Aproximem-se dele. E quando estivermos suficientemente perto, abram fogo contra aquela escória.
- Sim senhora, vou passar as ordens – declarou Alonso, afastando-se.
Alexandra virou também as costas ao navio pirata e dirigiu-se ao seu camarote com passos largos e decididos. Era uma mulher ainda jovem e bonita. Os poucos que sabiam da sua dedicação ao mar e da sua guerra aberta contra o marquês censuravam-na e chamavam-lhe insana. Mas ela pouco ou nada se importava, aquelas palavras só a faziam sorrir e honrar-se.
A sua alcunha nos altos mares era Pluma Escarlate, pela pena vermelha que trazia presa no chapéu negro tal como todo o seu traje. Escolhera-o em honra de seu pai, pois ele fora uma ave a quem injustamente roubaram a liberdade. A sua espada, outrora também dele, permanecia presa à cintura na sua devida bainha, esperando sangue. E talvez o tivesse mais cedo do que esperava.
O seu camarote era um espaço amplo e limpo, com poucos objectos pessoais. Dessa forma dirigiu-se directamente ao baú, aos pés da cama, que abriu com cuidado, dando a mostrar algumas roupas que já não usava: vestidos. Revolveu-os e retirou do seu interior uma caixa onde estavam guardadas duas pistolas, as respectivas munições e um saquinho de pólvora. Carregou as armas e prendeu-as no cinto. Depois olhou para um grande retrato que se encontrava encostado a uma das paredes de madeira do camarote. Nele mostrava-se um homem de espada na mão e olhar decidido, de aparência justa e corajosa.
Esta é por ti, pai. Mais cedo ou mais tarde, irão ceder, pensou. Fez uma pequena vénia ao quadro e saiu.
- Senhor Almiro! O que me diz dos nossos inimigos? – Perguntou, lançando um olhar à gávea do mastro principal onde se encontrava um homem já com certa idade, um dos mais responsáveis e fiéis marinheiros.
- É uma nau portuguesa!
Alexandra franziu as sobrancelhas intrigada. Normalmente as naus dos corsários eram de fabrico espanhol. Algo de estranho se passava ali. O que andariam a tramar?
As milhas que os separavam depressa se aproximaram, colapsando-se em poucos metros. E isso preocupou-a ainda mais. O rosto dos marinheiros da nau inimiga não eram assustados ou desorientados, não corriam de um lado para o outro a precaver-se contra o assalto de outro barco pirata. Não... esperavam o Flecha Dourada de armas apostas, armas invulgares para simples corsários.
Quando o primeiro canhão disparou contra a nau e fez o seu barco estremecer, Alexandra percebeu o que se passava. Era uma armadilha!
Os seus inimigos posicionaram as espingardas e começaram a disparar contra eles, enquanto de ambos os barcos voavam tiros de canhão certeiros e destruidores.
- Alonso!!! Temos que sair daqui, imediatamente! – Gritou, correndo em direcção à popa. No entanto insurgia um problema. No meio da confusão, ninguém ouvia a sua voz.
Praguejou alto. Aquela escumalha estava a desfazer-lhe o navio! Não tinham outra saída sem ser combater. E dentro do próprio navio estariam a perder contra as espingardas dos inimigos. Tinham que tentar algo mais ousado.
- Abordagem!!!
Vários olharam para a capitã quando a viram a saltar para a amurada com uma das pistolas na mão esquerda, enquanto que a outra segurava uma corda áspera. Muitos imitaram-na de imediato.
Com o devido balanço, voaram de um barco para o outro, aterrando em vários pontos da nau. Alexandra encontrava-se perto do leme, onde a esperavam vários marinheiros que, agora de perto, não lhe pareciam minimamente corsários. Estavam demasiado organizados. E não havia muitas mais hipóteses.
Subitamente apeteceu-lhe morder o chapéu de raiva ao perceber no tamanho da armadilha em que tinham caído. Estavam a atacar um barco da guarda real. Maldito fosse o Marquês! Aquela peste suína nojenta...
Fez pontaria e disparou um tiro contra o homem que estava mais perto de si e que ficara momentaneamente aparvalhado ao ver que o aclamado Pluma Escarlate era uma mulher. O homem caiu para trás com o impulso, levando a mão ao ombro direito, agora ensanguentado.
- Capitão... – gemeu, enquanto as dores lancinantes se propagavam pelo braço que segurava a espada.
Ao ouvir estas palavras Alexandra olhou em volta e disparou outro tiro, mas o alvo esquivou-se, desembainhando a espada e atacando-a com rapidez. Com aquela proximidade as espingardas não eram as armas mais propícias.
Recuou vários passos para evitar que a lâmina a golpeasse e imitou-o, aparando o último golpe com força.
Ambos se fitaram. O seu opositor não deveria ter mais de trinta anos. Pouco mais velho que ela, mas bastante audaz na esgrima. Sorria-lhe, mas permanecia cauteloso, agora que também Alexandra o atacara.
- Capitão Henrique, quais são as suas ordens? – Inquiriu um dos marinheiros, ou talvez fosse mais correcto chamar-lhe soldado.
- Capturem-nos! O Marquês quer-los vivos, incluindo o seu capitão. – Os seus olhos não se afastaram de Alexandra nem por um segundo. – Mas desse trato eu.
Com esta ordem o soldado dirigiu-se para o convés desembainhando também a sua espada, deixando-os a defrontarem-se.
- Cometeu um erro grave com este ataque – declarou, sem desmanchar o seu sorriso algures de triunfo, algures de entusiasmo e também algures de certo receio. Estava a pisar um terreno pouco seguro. Nunca lutara com uma mulher, mas já ouvira falar de quem o fizesse, e os resultados não tinham sido dos melhores. Era muito mais perigoso defrontar uma mulher com uma arma na mão do que uma dúzia de soldados preparados para a guerra. E quando essas mulheres têm preparação suficiente para defrontar um homem treinado num mano a mano... o melhor seria precaver-se.
- Não preciso que mo diga, monsieur. Mas acautele-se, porque ainda não tem a vitória nas mãos.
Dito isto partiu num ataque rápido e ágil. Estava em vantagem pois o homem pouco estava habituado a lutar sobre uma plataforma instável. O mar estava a seu favor.
Fê-lo recuar até à amurada com sucessivos e fortes golpes que tinham uma única finalidade: desarmá-lo. Não o queria matar, pois isso sim, era declarar guerra aberta a Portugal. E se isso acontecesse, seria o seu fim e o da tripulação. Assim como da sua própria pátria.
Mesmo assim, tinha que admitir que o homem era forte e tenaz. Estava a deixá-la cansada e isso raramente acontecia.
Por fim, com dois últimos golpes, o primeiro vindo da direita e o segundo vindo de baixo, a espada do capitão saltou-lhe da mão e caiu ao mar, desamparada e sem retorno.
- Agora, ordene aos seus homens para que parem de lutar e se rendam – declarou Alexandra num tom autoritário.
- E porque faria isso? – Apesar de desarmado, o capitão da guarda ainda a desafiava.
- Para o bem de todos eles, não quero ver ninguém morto. Se não o fizer, a minha piedade para com eles deixará de existir. E se vir bem, mesmo que os seus homens estejam melhor armados, os meus têm uma preparação que ultrapassa qualquer guarda. Estamos em vantagem. – Enquanto dizia isto a sua espada não se afastou do pescoço do homem, e um simples olhar bastou para confirmar as suas palavras e a realidade.
Muitos dos soldados encontravam-se caídos no convés, não se sabia se mortos ou vivos. Alexandra esperava que maior parte estivesse vivo para o bem de todos.
Após alguns segundos de expectativa, em que o capitão pesou os prós e os contras, a resposta acabou por chegar.
- Como quiser.
- Foi uma escolha sábia da sua parte, capitão Henrique – frisou as duas últimas palavras, denotando o conhecimento do seu nome. Afastou-se alguns passos sem deixar de lhe apontar a ponta afiada da espada. – Agora, dê a ordem.
E ele assim fez. Ao fim de cinco minutos as lutas tinham cessado, as armas dos soldados jaziam abandonadas no convés, e muitos deles olhavam ultrajados para o seu capitão que fora inevitavelmente derrotado por uma mulher pirata.
- Senhores! Regressem ao vosso navio e preparem-se para partir! – Falou Pluma Escarlate para a sua tripulação, de forma pouco alegre. Aquela não fora a vitória desejada.
Esperou que maior parte dos seus marinheiros tivesse já embarcado antes de embainhar a espada e se afastar do capitão da guarda real.
- Pluma Escarlate! – Chamou este aquando Alexandra recebia a corda que a faria saltar para o outro navio. – Não me diz pelo menos o seu nome?
- O que lhe interessa essa informação? – Não se voltou para ele quando fez esta pergunta.
- Penso que seja justo, também sabe o meu – fez notar.
- Muito bem, capitão Henrique. É bonito ouvir os outros falarem de justiça quando não a praticam – disse ironicamente, olhando para o homem de soslaio. – Mas o meu nome é Alexandra Vasconcelos. Já agora esclareça-me uma suspeita, quem pediu a El-Rei D. João III que vos enviasse?
- O Marquês de Tomar. – Era uma resposta simples, e mais que óbvia e o homem não lhe pedira sequer uma explicação pela questão.
Lançou-se de um barco para o outro, acabando por ser ajudada a subir para dentro do Flecha Dourada por Alonso que trazia um arco e uma aljava presos às costas.
Do outro lado, o capitão Henrique segurava algo que lhe parecia vagamente vermelho e além disso, familiar. A sua mão retirou o chapéu da cabeça, mostrando um lenço negro que lhe prendia os cabelos compridos. A pluma tinha sido decepada! Premiu os lábios, contrariada com aquele incidente. A espada do homem tinha sido mais rápida do que dera a parecer.
Por fim, mirou a nau e o seu capitão antes de se retirar para o camarote. Mal sabia ela que aquela não seria a última vez que o veria.
Nos dias que se seguiram navegaram até França. Precisavam de se reabastecer, e havia feridos que necessitavam de um tratamento mais cuidadoso. As balas dos guardas portugueses tinham crivado as suas mazelas.
Durante a madrugada de uma dessas noites de viagem, Alonso foi encontrar a sua capitã quase a destruir a amurada com murros de raiva. Não lhe agradava aquele estado de espírito tão tempestuoso.
- Alexandra, o que se passa? – Quis saber, pousando-lhe a mão no ombro. O seu único olho brilhava intensamente, rasgando a noite estrelada como um punhal. Um fenómeno pouco natural e de certa forma assustador para maior parte das pessoas. E apesar de ter só um olho, era o que melhor via de entre todos.
- Nada, estou só um pouco ansiosa – resmungou, fitando o mar na sua negritude calma. A Lua erguia-se no alto, em quarto minguante, marejando-os com um pouco da sua luz.
- Claro que sim!
Alexandra praguejou para si por entre os dentes.
- A nossa última incursão fez demasiados feridos – murmurou.
- Não podíamos ter imaginado que era uma emboscada...
- Mas podíamos ter suspeitado! – Gritou a capitã do navio, furiosa. A sua face era marcada por um esgar de raiva. – Podíamos ter recuado, podíamos... AHHH!!
Um novo e violento murro voltou a abater-se sobre as bordas do navio.
Alonso encolheu-se ao ver aquela demonstração de fúria. Alexandra precisava de ser apaziguada. Pousou a sua mão sobre a dela, compreensivamente.
- Alexandra, tu não és Deus. Não podes adivinhar, nem guiar o destino dos outros. Nem sempre podes navegar e sair vitoriosa. O mundo está contra os justos, está contra ti, dificultando-te a tua missão, ou talvez, quem sabe, auxiliando-te de uma forma rebuscada – levou aos lábios a mão da sua capitã e depositou-lhe um pequeno beijo. – Esta missão nem deveria ser tua. Olho para as tuas mãos e vejo a delicadeza de uma flor. Este mundo não é o teu. Não deverias continuar no mar.
- Vou acabar o que comecei – declarou friamente, tirando bruscamente a sua mão de entre a do amigo. Conheciam-se desde crianças, tinham um ano de diferença. Ele perdera o olho no dia em que tinham invadido a casa do Conde Vasconcelos para o prender. Ajudara-a a fugir, impedindo que fosse também julgada e morta.
- O Marquês não irá parar! Mandou uma nau contra nós no outro dia. Daqui a umas semanas mandará uma armada! Estás a condenar-nos à morte! – Finalmente os seus verdadeiros pensamentos vieram à tona.
- Eu não obrigo ninguém a ficar. Se ele os mandar, deixá-los vir. Irei ao fundo com o navio do meu pai, é a única e real memória que me sobra e ficarei com ela até ao fim. Se morrer antes disso, são livres de ir à vossa vida. Como já disse, não vos obrigo a nada.
Voltou-lhe as costas imponentemente, com a raiva a fervilhar no seu interior. Nesse momento tinha um único destino: subir à gávea e ali passar a noite a meditar no seu próximo passo.
Ao fim de quinze dias regressaram à costa portuguesa. Na sua ausência uma outra nau tinha sido atacada e saqueada pelos corsários espanhóis. Não tinham deixado um único sobrevivente para contar a história, logo os préstimos indesejáveis dos seus actos seriam oferecidos ao Flecha Dourada e a toda a sua tripulação. Ou seja, as culpas recairiam sobre si e os seus companheiros.
Depois de muito pensar, Alexandra decidira-se. Daria mais uma oportunidade ao seu navio de enfrentar e derrotar de vez o Marquês de Tomar. Se isso não acontecesse, tomaria medidas mais drásticas, apesar disso lhe poder custar a vida.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Naufrágio


Ninguém sabe e ninguém viu,
O barco afundar-se no mar alto
Que de lábios arreganhados lhe sorriu.
Ninguém soube que foi ele,
De caninos aguçados escorrendo o sangue
Do mar, que os comeu e devorou,
De papo sempre vazio,
Aquele que mastigou e cuspiu
Os destroços que à praia do mar,
Nos vagalhões que sopram corredios,
Se foram da morte aportar.

Recolheram, então, os tesouros,
O ouro que brilhava e pingava sangue,
Nosso ardor e vida árdua. Azar!
Que recolheram, levaram, venderam,
Moedas compradas ao mundo
Dado de ninguém, que ergueram,
Memórias de estátua ao profundo,
Horizonte distante – além morro por amar.
Aquele por quem o barco foi devorado,
Deglutido, escorraçado… oh! Naufragado!
Nos confins negros do mar.

sábado, 11 de julho de 2009

A Gárgula


A chama da candeia tremeluzia por entre a densa escuridão, enquanto se aproximava do altar fúnebre da igreja. Por qualquer razão desconhecida, aquele local encobria-se de escuridão. Nenhuma tocha acesa o alumiava e os vitrais não permitiam a passagem do inexistente luar.

Subitamente, escutou um estalar ruidoso, provindo de um dos cantos da igreja, e estacou, com mais medo do que um ladrão profissional deveria ter. A mão procurou o bolso das calças, retirando um canivete que se apressou a abrir. Avançou na direcção do barulho, de arma empunhada, a candeia revelando, metro a metro, o caminho à sua frente. Encontrou somente uma parede e uma recurvada estátua de três chifres e garras tão afiadas quanto um felino selvagem. Não percebia como permitiam que tal horror permanecesse dentro da igreja, competindo com a pacificidade dos santos.

Encolheu os ombros e voltou costas à gárgula, continuando até ao destino, onde se encontravam expostos os pertences em ouro e as estatuetas mais preciosas. Um novo estalar fez-se escutar, mas desta vez ignorou-o. Não deveria passar de uma ratazana esfomeada, explorando a igreja em busca de migalhas… Novo ruído de pedra contra pedra, mas baixo, muito baixo. Estendeu a mão para uma peça que representava a Virgem Maria. Porém, algo o deteve. Um bafo quente tocou-lhe o pescoço e o ladrão voltou-se, de arma em punho, pronto para cortar a garganta ao padre que interrompera o seu saqueio. O canivete deslizou sobre a pedra, soltando faíscas, mas depressa caiu ao chão. Dois olhos rubros fitavam-no da face pétrea da gárgula que vira ao canto da igreja, tão morta quanto qualquer pedra poderia estar. Mas aquela não estava e os lábios arreganhavam-se, mostrando as presas assassinas. Não conseguiu gritar, a voz estrangulando-se-lhe na garganta. O coração falhou e ele morreu do mais puro terror.

Texto para um passatempo do Correio do Fantástico

sábado, 4 de julho de 2009

O Teu Mundo



Quando ergueste a cabeça da almofada,
Viste um só mundo em teu redor.
Um mundo de cores efervescentes,
Dolorido de tons árduos d’aberrantes.
E quiseste novamente adormecer.

Mas o ruído não o permitiu.
O zumbido férreo que ameaçava picar
A carne tenra da tua mente, perseguia-te.
E obrigou-te a correr, correr deitado
Para além longe do mundo pintado,
Com cores de ninguém.

Que são aberrações e quem as quer?
Quiseste tu, que a escolha não te escolheu.
Restou-te a sobra de um mundo de sonhos,
A miríade de gosto amargo que é viver
As migalhas bolorentas do ser.

Mísero subconsciente de cerne seco
Em humidade que se destila, valeta abaixo,
Corredio de vadio, rédea solta. E ele persegue-te.
É teu. É sangue e tumor lívido de terra queimada.
Cabe-te a ti refreá-la. Cabe-te a ti cultivá-la.
Que esse mundo é só teu.

(a ouvir The Wizard's Last Rhymes, Rhapsody)