quinta-feira, 16 de junho de 2011

A Alma dos Mil Nomes


Escuto o uivar do Vento que se adensa nos céus nocturnos, tocando a Deusa que se ergue pálida no veludo negro. E ao que escuto dou significância, uma diferente daquela que dou ao Mar trovejante cuja escuma se empluma até à areia fina, trazendo notícias das profundezas: as batalhas dos reis tritões, as conquistas das sereias, o gorgolejo dos afogados.

Mas foram ambos, Vento e Mar, que um dia me contaram do Seu aportar à minha terra. Na verdade, aportar não seria o termo correcto, que não existe qualquer porto ou cais, somente a praia que se alarga e sitia a ilha, até alcançar o perímetro dominado pelos rochedos íngremes e de presas afiadas. O diálogo entre os Filhos da Natureza suscitou-me curiosidade e, com passos leves de pés descalços, deixei o bosque, abeirando-me da margem. Segui a percepção que a areia transmitia, localizando pouco depois o corpo transportado nos braços das águas – embalo que lhe fora fatal.

Ajoelhei-me à sua beira e estendi a mão para tomar percepção do que ali estava deitado. Toquei-lhe o rosto agora sem expressão, atentando aos traços firmes que falavam por si: era um homem. Os meus dedos deslizaram um pouco, sentindo-lhe os lábios semi-abertos dos quais não se vertia qualquer respiração, e seguiram um trilho que desceu pelo pescoço, parando somente ao alcançar o peito. Confirmava-se, o coração caíra no cansaço e deixara de bater. No entanto, o espírito ainda não quisera abandonar a prisão que era o corpo de alguém que estava impossibilitado da execução de uma projecção astral. E isso talvez fosse um Sinal.

- Ceri omorirê ê vulian sa nimanarhiô… - sussurrei, debruçando-me junto ao ouvido do homem.

Pouco depois, o corpo estremeceu sob o toque da minha mão. Ele sentou-se subitamente, acometido por uma tosse que tentava expelir toda a água salgada que se entranhara pelas vias respiratórias ao tentar tomá-las como domínio. Aguardei que se acalmasse primeiro, pousando ambas as mãos no colo, enquanto escutava a vida correr-lhe novamente nas veias.

Quando a tosse quis cessar, o Vento murmurou-me ao ouvido com uma leve brisa: “Ele está a olhar para ti…”. Sorri face àquela constatação. Já o tinha sentido. Na verdade, não me era difícil sentir os olhares dos outros, crescera a aprender fazê-lo.

- Sê bem-vindo à minha ilha, jovem do mar – cumprimentei, aguardando a libertação de uma torrente de questões que estariam presas na mente dele. Mas o homem ficou em silêncio e quase me perguntei se seria mudo, até que por fim ganhou voz.

- O teu cabelo é feito de neve?

Não, não era a pergunta que esperava escutar. Estava errada. A primeira questão deveria ser outra.

- O meu cabelo não tem cor, tal como a neve não tem. Mas não são feitos da mesma essência – afirmei-lhe. Ele deixou-se cair novamente em silêncio, antes de uma nova questão, desta vez um pouco menos estranha.

- És uma sereia?

- Não sou uma sereia. Não tenho barbatanas sequer. – Desta vez sorri.

Ele moveu-se, como quem espreita para confirmar o que lhe dissera.

- Não, não és… - A respiração dele aproximou-se do meu rosto, observando-me mais de perto. – A noite não me está a enganar. És cega. Os teus olhos são quase tão brancos quanto o cabelo.

Não deixei de sorrir. Aquele estranho homem tinha razão. Porém, apesar da afirmação, as perguntas ainda não tinham atingido a recta final.

- Que palavras estranhas me sussurraste ao ouvido? Não as compreendi, mas senti-as como uma onda que percorreu os músculos, quando pensei que nunca mais seria capaz de os mexer.

- “Que reencontres o sopro da vida…” foi o que te disse, chamando-te à consciência. São as palavras da Deusa.

- Oh… és uma Deusa? – Havia espanto na voz enrouquecida. Mas nada mais que isso.

- Não. Sou a Alma dos Mil Nomes, somente uma serva que cuida da ilha, protegendo e auxiliando os seus habitantes.

- Porquê mil nomes e não um?

Soltei um suspiro. Aquele humano parecia ter retrocedido até à infância. Normalmente só os pequenos faziam tais perguntas em momentos tão inusitados quanto aquele. Acabara de ressuscitar e, apesar de tudo, parecia pôr esse facto de lado.

- Porque cada ser me chama por aquilo que pensa que devo ser chamada – expliquei. – Não tenho um só nome mas, na verdade, todos os nomes formam um único, impronunciável. Podes nomear-me como te aprouver. Mas isso é acessório, existem coisas mais importantes a discutir. Lembras-te como foste ter ao mar?

Senti-o acenar e desviar o olhar para as águas.

- O navio onde seguia prisioneiro foi atacado por uma criatura das profundezas. Uma enorme serpente branca de dentes afiados que quebrou e engoliu o navio. Pensei que fosse morrer… e morri realmente, não foi? Mas encontraste-me e trouxeste-me à vida, mataste-me e ressuscitaste-me.

Entreabri os lábios sem que nenhuma palavra se escapasse, completamente emudecida. Como percebera ele a verdade do acontecimento? Que percepção mística o poderia habitar?

- Os teus olhos são iguais aos da serpente. O teu cabelo é tão branco como eram as suas escamas brilhantes donde escorriam ribeiros de água quando se elevou para silenciar o navio corsário. E és estranhamente bela. Uma libertação, um golpe violento que antecede a paz.

Dei-me conta que as palavras do homem não eram nenhuma percepção mística, mas a visão de quem via além, de quem queria alcançar outro patamar dentro da alma. E este estranho náufrago subira vários ao longo da vida.

- Como te chamas? – Acabei por perguntar, procurando a mão dele com a minha. Encontrei-a facilmente e explorei-a, sentindo as calosidades e a aspereza que a vida lhes provocara. Mas também a gentileza que se escondia sob elas.

- Espírito Sem Nome. – E consegui perceber um sorriso naquela resposta, um sorriso doce como o luar. – Enquanto tiveres mil nomes, não terei nenhum.

- Então, Espírito Sem Nome, vamos até um sítio onde possas descansar e alimentar-te. Depois encontrar-te-emos um nome.

Levantei-me da areia e levei-o pela mão, aquele novo habitante da ilha.

(Conto para o Fórum Mundo Marillier
exactamente 1000 palavras xD)

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Um Coração nas Tuas Mãos


Quando, ao segurares nas mãos o coração de alguém,
Te esqueceres a quem pertence;
Quando perderes a sensibilidade do toque
E deixares de sentir o seu palpitar,
Lembra-te que ainda é um coração,
Vivo ao morto.

Lembra-te que te foi oferecido
Não por ser indesejado, mas por te desejar.
E por isso, não feches a mão.

Trata dele e tenta revivê-lo,
Porque apesar de não ser o coração que vive
Latente no teu peito,
Não deixa de ser teu pertence
A alma nele contida.

Um ente que te acarinha
Sem mesmo sentires.