A lâmina refulgia a cada corte, a cada trespasse, a cada impacto no Muro
do Inferno. A pedra contorcia-se, gritava com milhares de bocas e espumava lava
ardente dos golpes, como se fosse sangue. Os rostos incrustados no basalto que conseguiam
escapar às espadeiradas atiravam-lhe impropérios e revelavam-lhe o interior da
boca ígnea, de gengivas nuas.
Todos eles eram espíritos malignos, e aquela fora a sua sentença pós-morte:
viverem emparedados pelo crime de terem eles mesmo emparedado fosse o que fosse,
desde um humano do qual desejavam vingança, aos sonhos de uma criança. E ali
fora emparedado um dos seus sonhos, junto com o criminoso. Mas que sonho era?
Ele não fazia ideia, pois ao perdê-lo perdera também a recordação do mesmo.
Com um golpe brusco, a espada rasgou uma das faces que se desfez em pó. Onde
estava a do ser criminoso? Como reconhecê-lo entre todos aqueles infinitos
rostos gémeos de pecado?
De súbito, o coração de Amadis entrou em fibrilação, ameaçando saltar-lhe
do peito. Um olhar vazio cruzara-se com o seu e, sem conseguir evitar, mergulhou
nele de cabeça.
Caiu sob um céu cinzento, sem ter onde se agarrar, até os pés tocarem no
chão. Aterrou com um movimento felino e ergueu uma cabeça. À sua frente, uma
silhueta feminina caminhava ao longo de uma estrada que não tinha fim, num
passo decidido. Mas afastava-se, cada vez mais e mais, de costas voltadas para
si.
Obrigou-se a afastar a visão e rosnou de fúria ao investir contra o
espírito. A espada enterrou-se na fronte do rosto demoníaco que o fitou,
boquiaberto. E o sonho inundou-o, a recordação dela, do seu sorriso, dos
seus resmoneios, enquanto alma se
desvanecia.
Onde estaria Aline?
25 - Lâmina de Sangue