quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Pacto Quebrado


Tudo o que se inicia tem um dia um fim. Mesmo para nós, ditos imortais, nós que permanecemos para além da idade para que fomos construídos. Porém, quão grande é a dor que nos consome, quando os vimos partir muito antes do previsto, quando estamos deitados à sua beira, apertados nos seus braços, e sentimos que o último suspiro se esvai levado pela devoradora do tempo, aquela que dilacera o corpo e deixa somente a alma extenuada. Assim foi com a Pequenina. Durante a noite, trajado no seu vestido de anjo, o espírito abandonou o corpo onde habitara durante cinco anos. Senti quando o invólucro que me apertava esfriou, e abri os olhos sem pálpebras para fitar o tecto gretado, com os meus pequenos olhos em forma de pérola. E vi-a, um espectro esguio de olhar incompreendido, tão pequeno como outrora fora. Não, ela não percebia o que acontecera. Mas o meu inato sabia-o, nascera para o compreender, pois todos nós nascíamos para perder aqueles que amávamos. Porém, não assim.

Saí de entre os braços mortos que me abraçavam e trepei pela almofada, estendendo os membros superiores pequenos e sem dedos para o espírito. “Vem a mim, regressa e vive. Não voes para as distâncias desconhecidas do ermo mundo dos céus, não para já, Pequenina. Volta”.

Notei o espanto que se espalhou na sua face translúcida. Eu acabara de fazer o que ela sempre ansiara, algo que estava proibido de fazer, por todas as Leis que me mantinham vivo. Uma pressão súbita apertou-me o peito, esmagando-me o coração de esponja. Mas não deixei de lhe estender os braços, de a chamar a mim.

“Regressa e volta a rir e a chorar, volta a perguntar o porquê das coisas”.

E ela estendeu ambas as mãos de dedos pequenos para mim, tentando agarrar-me, mas sem ser capaz de fazê-lo. Quando o seu corpo incorpóreo passou através do meu, pude constatar o quão frio e líquido parecia. Lembrava-me as vezes em que a progenitora da minha Pequenina me colocara na estranha máquina que me enchia de água e espuma e me fazia rodar incessantemente.

“Não. Antes tens de voltar para ali”, indiquei com o meu braço azul e esponjoso.

Ela olhou para o corpo e acenou negativamente. Não queria regressar. A voz da minha Pequenina chegou até mim: “É triste, estou sozinha”.

“Não estás, eu estou contigo, vou sempre estar, como sempre estive”.

Ela fitou-me por uns momentos, pensando nas palavras que escutara. E, por fim, sorriu.

“Sim, estiveste”, constatou o seu espírito.

E, sem esperar por autorização, desceu de volta ao corpo. Abeirei-me da face dela, tocando-lhe com o tecido que me cobria. Quanto ao meu interior, estava a ser percorrido por sucessivos laivos de dor não demonstrada, mas aguardei até ver o que desejava. As pálpebras da Pequenina estremeceram e o seu rosto ganhou nova cor. Os olhos abriram-se, revelando a íris castanha-clara, pontilhada de estrelas douradas. A minha menina voltara! Quando ela mexeu os braços para me agarrar, senti que algo se rompia no meu inato e soltei um grito mudo. O Pacto fora quebrado, uma humana viva vira-me vivo, eu, um simples urso de peluche. Não mais a visão humana contemplaria o meu corpo mexer-se. Todos tínhamos uma oportunidade e eu gastara a minha, pela minha Pequenina. Ainda escutei a sua vozinha chamar por mim, mas a resposta extinguiu-se antes que pudesse pronunciá-la. E agora sou um peluche cego, insensível… morto. Mas a minha menina vive.

7 comentários:

Frankie disse...

...de uma ternura encantadora :)

Sabes, tenho um urso de peluche que me "acompanha" (literalmente) desde bébé. Não sei se foi por isso mas as tuas palavras tocaram-me muito; acho que sim, que foi por isso; porque ele esteve sempre comigo.

Um beijo

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Muito obrigada ^^

O ursinho foi inspirado num peluche que tenho. Quando escrevo algo com ursos de peluche, é sempre nele que penso. É o meu favorito.

Beijinhos!

Kath disse...

Aproveitei para cá vir, já que fui ao blogger. ^^"

Lembrei-me logo do teu urso ao ler esta história, e gostei do lado querido dele, e da magia da vida dele que me lembrou, em parte, Toy Story.

E a tua escrita é, como sempre, excelente!

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Obrigada, minha coisa fofa!

Mas ainda não consigo escrever como tu :p

Afonso Arribança disse...

Tão bonito! Estava à espera de outra coisa, quando de repente surpreendes com o facto do narrador ser um urso de peluche. Adorei mesmo.

E parabéns, acho que além do enorme talento para a poesia, revelaste ter também imenso talento para contares histórias.

Beijinho

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Muito obrigada, Afonso ^^

Nuno Vicente disse...

Adorei Leto, focaste muito alguns pormenores, o que da para sentir alguma envolvencia com os acontecimentos narrados e depois todos nós, na nossa infancia, ja tivemos assim um "amigo", mas sem nunca ter pensado no seu lado...

Gostei, beijinho=)