quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Sortilégio, Feitiço e Magia



De espada em punho, armado,
Cavalga de coragem desfraldada.
De trilho em trilho, negro bosque,
Busca célere por sua amada,
Bela dama, donzela doce,
Dos seus braços apartada.

Chama-o a que é encantada,
Sortilégio, feitiço e magia que a prendeu,
Voz de melodia e rosnar… nada,
Que o trilho é finito na estrada,
Tão finito que se perdeu
Junto à cabana incendiada.

Abandona o corcel; é pranto
Que lhe consome o peito a arder.
É força efémera, no entanto,
A flor que renasce do perecer,
Cinza que incendeia, Fénix que ateia
Imortal esperança de a reaver.

“Cavaleiro de coragem viva
E bondade audaz” disse a flor,
Falando sobre a brisa que a envolvia,
Queimando a sua vida com o calor
Que o incêndio deixara na terra,
Tanto que a matava de dor.

“Sou a voz e o silêncio do Bosque,
Escuta-me e atenta:
Além há uma besta que sente,
Ferida no peito, tão doente.
Cura-a, mas sabe, então,
Que tem da tua dama o coração”.

De fragilidade esvaiu-se a flor,
Sem lhe dar tempo de a questionar,
Mas se terrível besta roubara de seu amor
O coração a palpitar,
Não lhe tinha qualquer favor,
Somente a vida para lhe tirar.

Caminhou bosque a dentro,
Passos pesados a esmagar
Gravetos, pedras, pequenas vidas,
Com somente raiva a trovejar,
Até à clareira onde jazia
A terrível besta a matar.

Era gigante e imenso,
Dragão ancião, Senhor do Ar,
De cujas escamas o brilho denso
Lembrava o das lâminas e do mar,
Onde mais do que tenso
Era o seu respirar.

Aproximou-se, empunhando a frieza,
E de dedos crispados na morte.
Passo ante passo, que era certeza,
Que o dragão teria nenhuma Sorte.
Roubara-a o futuro quando lhe tirara
Dos braços a sua terna consorte.

Contudo o espanto roubou-lhe o ar,
Ao chegar-se mais perto
Para o dragão poder espreitar.
Tremendo de medo, de certo,
Ali estava frágil, tão frágil, a donzela
Que morta acabara de julgar.

Recolheu-a, sem a besta acordar,
E tomou-a nos braços.
As lágrimas eram pérolas a rodar
No rosto ebúrneo e os cabelos baços
Emolduravam o desesperar
Que contorcia tão belos traços.

“Mata-o” sussurrou contra o seu ombro
Os soluços embargando-lhe a voz,
O corpo estremecendo de assombro.
“Mato-o, antes que mate cada um de nós,
Queimando-nos até sermos cinza
Com o calor que incendeia, fogo atroz”.

Não havia como discordar.
Apartou-a dos seus braços e afastou
Sua presença para a resguardar.
Foi quando o dragão despertou,
De orbes fendidos, azul profundo de lago,
Onde a sua alma foi mergulhar.

O corpo flutuou na corrente
Que era a memória daquele olhar.
Uma canção embalava-lhe a mente,
Sem palavras vãs, só o seu tocar
Tão íntimo de quem sente
Que há algo mais a recordar.

“É um feitiço, mata-a!” gritou a voz,
E ele despertou.
Fechou os olhos e a espada atroz
Caiu, cortou e roubou
O que era o antes, o agora e o após,
E a canção terminou.

Atrás de si ela riu,
Uma gargalhada que cresceu,
Dominou os bosques e fugiu
Com a sua dona que se perdeu
No covil de quem agiu
Em maldade e venceu.

Desvaneceu-se aos poucos,
Sortilégio, feitiço e magia… ilusão.
Só uma dama frágil, de cabelos soltos
Havia ali, e não um dragão.
Cego, tão cego, ao azul daquele olhar
Que reconhecera em vão.

Caiu junto dela e abraçou
O corpo que vertia o rio da vida.
Caiu e não mais a libertou,
Que era de eterna despedida,
Um abraço onde também ele deixou
Partir a própria vida.


St. George Slaying the Dragon, Hans von Aachen

Originalmente publicado em Fantasy & Co. 

sábado, 3 de janeiro de 2015

Treme entre os alicerces do que é



Treme entre os alicerces do que é
Hoje o contraforte do Homem,
Treme e expira a vida que é fé
A consumir o que consomem,
Quanto do que não é seu
E tudo o que é teu.

Treme e arranca-lhes as raízes
De ferro, que te magoa
A audácia da cobiça. Predizes
A queda da falsa ave que voa,
Sob a terra, sob o mar,
Vida tua que irás tomar.

Não contas o tempo, anos e Eras
São suspiros dos que vão.
Esses incontáveis, almas meras
Mas tão cerne de coração.
Treme e toma tudo, és Natura, Mãe e Pai
Daquilo que é e do que se esvai.


Sismo de Lisboa de 1755, artista desconhecido