Ao término dos poucos minutos que tal fenómeno demorou a propagar-se, não se distinguiam já os perfis do que era e do que foi, as labaredas subindo em direcção ao céu, com uma só forma movediça, sobre a qual a chuva se precipitava, incansável, querendo saciar aquele ímpeto acordado que desabrochara, florindo na mais gloriosa e gigantesca flor. Os tons com que aquele fogo estava pintado, tornaram-se mais claros, à medida que os instantes se passavam, até atingir uma mistura do que poderiam ser tons de branco, se pudesse o branco ter várias tonalidades. Na sua intrincada dança, as mentes mais acordadas para a essência da Natureza, poderiam discernir um número sem fim de criaturas vivas, muitas delas nunca antes vistas pelos olhos humanos, que tantas vezes possuíam pálpebras invisíveis e sempre fechadas.
As chamas foram decaindo aos poucos e, em simultâneo, o céu desanuviou-se, as nuvens vazias de tanto chorar, considerando que era hora de cessar os louvores. Outro dia, noutra hora, talvez noutro mundo que não aquele, voltariam a agraciar a donzela branca, quando o tempo considerasse que seria correcto permitir-lhe vir ao mundo.
Por fim, as chamas extinguiram-se. E no entanto, no seu lugar não permaneceu a vulgar marca deixada por um qualquer fogo maligno, pois aquele não o era. Era certo que do primoroso coreto não ficara qualquer vestígio intacto, incinerado como o mais volátil dos materiais. Não obstante isto, o que realmente deveria ter-se extinto, propagou-se, mais fértil que outrora, cobrindo todos os locais a que os jardineiros se davam ao trabalho de podar, retirando-lhe a liberdade há muito implorada e agora concedida. As roseiras propagaram-se, floridas do seu escarlate de sangue… tanto sangue! Porventura era o reflexo do muito líquido vital que corria nas veias da jovem que desaparecera, aquando o incêndio. No centro dos remanescentes inanimados do coreto, floria também outra rosa, mas a esta fora roubada toda a tonalidade escarlate, como se despida de toda a mácula que tingia qualquer outro ser, as influências exteriores que manipulam o inato.
Os raios de sol afastaram as nuvens que encobriam o azul celeste. Sempre sorridente, o astro rei permitiu que o seu brilho se reflectisse nas gotículas que pontilhavam toda a vegetação. Agora, a terna donzela de branco amaria aquela morna amabilidade que era vida e morte para todos os que respiravam. A dor fora banida, assim como a consciência e o pensar que um dia seria novamente um ser com vontade própria.
E nessa inconsciência, não escutou os passos que pisaram a terra molhada, nem sentiu a mão que se precipitou para si, com um espanto incrédulo. Porém, a força abandonou o seu corpo, sem que pudesse dar conta, colhida da fonte que a sustinha, por um ente curioso que se apoderara de uma raridade que sempre o seria. Um último beijo tocou-lhe nas pétalas, uma breve despedida, um “até amanhã” para a vida que decaía.
As últimas gotas que choviam, já longe do alcance humano, adornavam o céu com um ténue arco-íris que começava naquele mundo e acabava noutro, muito além, donde espreitava o desconhecido que muitos não ousavam revelar. Dos que possuíam essa audácia, poucos sobreviviam, pois poucos mereciam sobreviver. Contudo, os que voltavam, jamais eram os mesmos. A maioria que tinha conhecimento desse fenómeno de ida e volta, chamava fantasmas àqueles que transpunham as muralhas entre-mundos. No entanto, eram mais, muito mais do que isso. Tal como aquela donzela. Ontem fora borboleta ingénua, que o vento guiara; hoje era rosa, criada pelo fogo; e, amanhã, o que será? As hipóteses distribuem-se numa imensidão de Tudo e Nada, mas algo é certo, será o que no seu espírito se reflicta: um mundo, um universo, um infinito… um ciclo de eternidade efémera.