– Talvez seja mesmo melhor ir-me embora e deixar-vos aqui fechada, donzela – acabou por concluir, regressando para junto da janela. – Talvez outro cavaleiro não se importe de socorrê-la. E talvez esse outro cavaleiro deseje mais recompensas para além do vosso bem-estar.
O corpo de Amadis começou a esfumar-se no ar e foi levado pela brisa. Lá em baixo, o unicórnio soltou um relincho quando o seu legítimo dono o montou, afastando-se no horizonte escuro, poucos segundos depois.
Com um piscar de olhos, Aline regressou para junto da cama de dossel rasgado, após apanhar os binóculos do chão. Deixara a sua hipótese de fuga ir-se embora com o vento e ficara sozinha novamente, sem saber como sair. Um cisco inoportuno entrou-lhe para um dos olhos, levando a que uma lágrima se vertesse. Ou pelo menos seria essa a desculpa que a caçadora utilizaria se alguém lhe perguntasse a razão do seu choro.
– Amadis… – sussurrou, encolhendo-se um pouco sobre os joelhos. – Porquê que és um idiota?
A superfície lisa do espelho emitiu um brilho fugaz e a extremidade de um tabuleiro surgiu acompanhada por uma mão, que se preparava para pousar o jantar da caçadora. Ela lançou-lhe um olhar torto e não pensou um instante antes de arremessar novamente os binóculos. Desta vez falhou o alvo, conseguindo a mão escapar ilesa. Praguejou, chamando-lhe todo um chorrilho de nomes menos próprios em francês.
Ficou muito quieta, pensando em como tudo aquilo tinha começado. Não conseguia recordar-se perfeitamente, só sabia que um dia acordara e estava ali, deitada naquela cama, no cimo daquela torre feia e meia torta que cheirava a mofo. E lembrava-se de como o calor e o frio alternavam, com o nascer e o pôr-do-sol que aconteciam a um ritmo acelerado. Estremeceu e abraçou o próprio corpo, esfregou os braços para se aquecer, mas sabia que não iria sortir resultado. Era como se um demónio glaciar soprasse à janela e inundasse o quarto com o seu frio. Em resposta àquela sensação, os dentes começaram a tiritar.
Deixou-se então deitar na cama, sem se tapar. Quando adormecia, os lençóis brancos transformavam-se em fantasmas que a agarravam, e o melhor método para o evitar era dormir sobre eles. Tentara destruí-los à pancada e com virotes de besta, mas eles resistiram e ficaram somente esburacados.
Com um inspirar fundo, chamou a calma a si, para que pudesse dormir mais uma curta e longa noite. Se um dia apanhasse o Deus Hipno e os filhos, ensiná-los-ia a não se meterem consigo…
Um toque leve no rosto despertou-a, e não foi preciso mais do que isso para ela saltar da cama e afastar-se numa corrida, antes de sequer ver quem poderia ser.
– Minha donzela – começou o príncipe Amadis, ainda com a mão estendida perto do local onde a caçadora tivera a cabeça –, trouxe-vos auxílio, após uma árdua busca.
Os olhos da caçadora saltaram para uma figura diminuta, ao lado do vampiro. Por um momento pensou que era uma daquelas fadas que ele descrevera, até se lembrar que estas deviam ser cinco vezes mais pequenas. Era uma miúda maltrapilha, com a boca suja de chocolate e o cabelo desgrenhado. Ela retribuía-lhe a atenção com dois olhos muito expressivos que a escrutinavam de cima a abaixo, como se conseguissem ver para além de si.
– Uma criança... – constatou, fingindo-se pouco crédula. – Como é que uma criança me pode ajudar?
– Chamo-me Magda e sou bruxa – ripostou a miúda, num tom cáustico. – Respeitinho ou transformo-te numa lesma ranhosa.
Amadis afastou-se um passo despercebido, como para se certificar de que a ameaça não se dirigia também a ele por engano ou por arrasto. A suposta pequena feiticeira ignorou-o e aproximou-se do espelho, enquanto tirava o resto do chocolate do bolso do vestido de bainhas descosidas. Deu-lhe uma dentada enquanto observava as inscrições estranhas.
– Aqui diz que – começou, de boca cheia – “O pensamento frontal e maiúsculo reflecte o enigma: testemunha a esperança e sonha a terra adventícia”.
Aline e Amadis observaram a menina que saboreava o chocolate, enquanto pensava naquelas palavras enigmáticas. Nenhum dos dois compreendeu o que poderia querer dizer a frase.
– Ah, é fácil – acabou Magda por afirmar, voltando-se para a ex-princesa. – Tens de encostar a testa ao espelho.
O silêncio instalou-se entre eles, ao ouvirem aquela afirmação, só interrompido pelo relinchar impaciente do unicórnio.
– Encostar a testa ao espelho… e como é que chegaste a essa conclusão? Qual é mesmo a tua lógica? – Aline cruzou os braços sobre o peito. Algo que lhe dizia que a miudinha estava a tentar aldrabá-la.
Magda revirou os olhos, antes de apontar com o chocolate à inscrição do espelho.
– “Testemunha a esperança e sonha a terra adventícia”, se fizermos um acrónimo com isto, ficamos com a palavra TESTA. E depois ainda há esta parte do pensamento frontal, que também remete para “testa”, e a parte da reflexão. Tendo em conta que este espelho não reflecte o raio que o parta, talvez possa reflectir os teus pensamentos se encostares lá a cabeça – explicou.
A cabeça de Amadis acenou, parecendo ficar extremamente convencido com aquela explicação. Quanto à caçadora, fez um leve esgar de dúvida. Todavia não perdia nada em tentar. No máximo fazia figura de parva. Avançou até perto da superfície espelhada que nada reflectia e no momento a seguir já lhe tinha encostado a fronte. Nada aconteceu.
– Estou a fazer alguma coisa mal? – perguntou, pouco amavelmente.
– Hm… fecha os olhos – ordenou Magda, dando outra dentada no chocolate.
Com um ranger de dentes, obedeceu à criança. Sentiu-se igual: em pé, com a testa contra um espelho frio, a seguir os conselhos de uma fedelha gulosa. Contudo, instantes depois, um beijo leve mas frio tocou-lhe a bochecha.
– Amadis? – questionou, antes de ser acometida por uma vertigem brusca que lhe roubou o chão dos pés. A mente toldou-se com uma névoa negra e as costas bateram sem aviso, mas não sobre a pedra do quarto. Lembrava-lhe mais um colchão. A superfície do espelho tornou-se húmida, macia e moldável, mas continuou fria. Atreveu-se a abrir as pálpebras, hesitante, e viu o rosto dele próximo do seu. – Amadis?
– Sou eu – confirmou, com um sorriso terno. – Fico feliz por te ver acordada. Já te íamos levar ao hospital se a febre não baixasse.
Piscou os olhos, assimilando o que escutava. Hospital? Febre? Com cuidado levou uma mão até à testa, sentindo a toalha fria. Com que então era isso. Soltou um suspiro e não deixou de sorrir. Fora tudo um pesadelo.
– Sonhei que eras um príncipe encantado bissexual com um unicórnio, morceguito – comentou, fechando os olhos e não deixando de sorrir ao dizer aquilo.
– Por acaso, comprei um unicórnio de peluche para te oferecer, minha caçadora… como é que adivinhaste?
Aline riu-se baixinho. Aquele já era o seu Amadis.
O corpo de Amadis começou a esfumar-se no ar e foi levado pela brisa. Lá em baixo, o unicórnio soltou um relincho quando o seu legítimo dono o montou, afastando-se no horizonte escuro, poucos segundos depois.
Com um piscar de olhos, Aline regressou para junto da cama de dossel rasgado, após apanhar os binóculos do chão. Deixara a sua hipótese de fuga ir-se embora com o vento e ficara sozinha novamente, sem saber como sair. Um cisco inoportuno entrou-lhe para um dos olhos, levando a que uma lágrima se vertesse. Ou pelo menos seria essa a desculpa que a caçadora utilizaria se alguém lhe perguntasse a razão do seu choro.
– Amadis… – sussurrou, encolhendo-se um pouco sobre os joelhos. – Porquê que és um idiota?
A superfície lisa do espelho emitiu um brilho fugaz e a extremidade de um tabuleiro surgiu acompanhada por uma mão, que se preparava para pousar o jantar da caçadora. Ela lançou-lhe um olhar torto e não pensou um instante antes de arremessar novamente os binóculos. Desta vez falhou o alvo, conseguindo a mão escapar ilesa. Praguejou, chamando-lhe todo um chorrilho de nomes menos próprios em francês.
Ficou muito quieta, pensando em como tudo aquilo tinha começado. Não conseguia recordar-se perfeitamente, só sabia que um dia acordara e estava ali, deitada naquela cama, no cimo daquela torre feia e meia torta que cheirava a mofo. E lembrava-se de como o calor e o frio alternavam, com o nascer e o pôr-do-sol que aconteciam a um ritmo acelerado. Estremeceu e abraçou o próprio corpo, esfregou os braços para se aquecer, mas sabia que não iria sortir resultado. Era como se um demónio glaciar soprasse à janela e inundasse o quarto com o seu frio. Em resposta àquela sensação, os dentes começaram a tiritar.
Deixou-se então deitar na cama, sem se tapar. Quando adormecia, os lençóis brancos transformavam-se em fantasmas que a agarravam, e o melhor método para o evitar era dormir sobre eles. Tentara destruí-los à pancada e com virotes de besta, mas eles resistiram e ficaram somente esburacados.
Com um inspirar fundo, chamou a calma a si, para que pudesse dormir mais uma curta e longa noite. Se um dia apanhasse o Deus Hipno e os filhos, ensiná-los-ia a não se meterem consigo…
Um toque leve no rosto despertou-a, e não foi preciso mais do que isso para ela saltar da cama e afastar-se numa corrida, antes de sequer ver quem poderia ser.
– Minha donzela – começou o príncipe Amadis, ainda com a mão estendida perto do local onde a caçadora tivera a cabeça –, trouxe-vos auxílio, após uma árdua busca.
Os olhos da caçadora saltaram para uma figura diminuta, ao lado do vampiro. Por um momento pensou que era uma daquelas fadas que ele descrevera, até se lembrar que estas deviam ser cinco vezes mais pequenas. Era uma miúda maltrapilha, com a boca suja de chocolate e o cabelo desgrenhado. Ela retribuía-lhe a atenção com dois olhos muito expressivos que a escrutinavam de cima a abaixo, como se conseguissem ver para além de si.
– Uma criança... – constatou, fingindo-se pouco crédula. – Como é que uma criança me pode ajudar?
– Chamo-me Magda e sou bruxa – ripostou a miúda, num tom cáustico. – Respeitinho ou transformo-te numa lesma ranhosa.
Amadis afastou-se um passo despercebido, como para se certificar de que a ameaça não se dirigia também a ele por engano ou por arrasto. A suposta pequena feiticeira ignorou-o e aproximou-se do espelho, enquanto tirava o resto do chocolate do bolso do vestido de bainhas descosidas. Deu-lhe uma dentada enquanto observava as inscrições estranhas.
– Aqui diz que – começou, de boca cheia – “O pensamento frontal e maiúsculo reflecte o enigma: testemunha a esperança e sonha a terra adventícia”.
Aline e Amadis observaram a menina que saboreava o chocolate, enquanto pensava naquelas palavras enigmáticas. Nenhum dos dois compreendeu o que poderia querer dizer a frase.
– Ah, é fácil – acabou Magda por afirmar, voltando-se para a ex-princesa. – Tens de encostar a testa ao espelho.
O silêncio instalou-se entre eles, ao ouvirem aquela afirmação, só interrompido pelo relinchar impaciente do unicórnio.
– Encostar a testa ao espelho… e como é que chegaste a essa conclusão? Qual é mesmo a tua lógica? – Aline cruzou os braços sobre o peito. Algo que lhe dizia que a miudinha estava a tentar aldrabá-la.
Magda revirou os olhos, antes de apontar com o chocolate à inscrição do espelho.
– “Testemunha a esperança e sonha a terra adventícia”, se fizermos um acrónimo com isto, ficamos com a palavra TESTA. E depois ainda há esta parte do pensamento frontal, que também remete para “testa”, e a parte da reflexão. Tendo em conta que este espelho não reflecte o raio que o parta, talvez possa reflectir os teus pensamentos se encostares lá a cabeça – explicou.
A cabeça de Amadis acenou, parecendo ficar extremamente convencido com aquela explicação. Quanto à caçadora, fez um leve esgar de dúvida. Todavia não perdia nada em tentar. No máximo fazia figura de parva. Avançou até perto da superfície espelhada que nada reflectia e no momento a seguir já lhe tinha encostado a fronte. Nada aconteceu.
– Estou a fazer alguma coisa mal? – perguntou, pouco amavelmente.
– Hm… fecha os olhos – ordenou Magda, dando outra dentada no chocolate.
Com um ranger de dentes, obedeceu à criança. Sentiu-se igual: em pé, com a testa contra um espelho frio, a seguir os conselhos de uma fedelha gulosa. Contudo, instantes depois, um beijo leve mas frio tocou-lhe a bochecha.
– Amadis? – questionou, antes de ser acometida por uma vertigem brusca que lhe roubou o chão dos pés. A mente toldou-se com uma névoa negra e as costas bateram sem aviso, mas não sobre a pedra do quarto. Lembrava-lhe mais um colchão. A superfície do espelho tornou-se húmida, macia e moldável, mas continuou fria. Atreveu-se a abrir as pálpebras, hesitante, e viu o rosto dele próximo do seu. – Amadis?
– Sou eu – confirmou, com um sorriso terno. – Fico feliz por te ver acordada. Já te íamos levar ao hospital se a febre não baixasse.
Piscou os olhos, assimilando o que escutava. Hospital? Febre? Com cuidado levou uma mão até à testa, sentindo a toalha fria. Com que então era isso. Soltou um suspiro e não deixou de sorrir. Fora tudo um pesadelo.
– Sonhei que eras um príncipe encantado bissexual com um unicórnio, morceguito – comentou, fechando os olhos e não deixando de sorrir ao dizer aquilo.
– Por acaso, comprei um unicórnio de peluche para te oferecer, minha caçadora… como é que adivinhaste?
Aline riu-se baixinho. Aquele já era o seu Amadis.
FIM
16 - Aline
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