terça-feira, 22 de abril de 2008

O Acorde das Almas



“A vida é um fragmento destilado”

As teclas fluíam-me sob os pálidos e singelos dedos, descrevendo círculos complexos e viciantes num novo século que se consumia a si mesmo na monotonia que era a desgraça. Sim, disso tinha a certeza, e além de monótona, era inútil, vã como o tempo que não segue o seu trilho incontestável.
Tinha tudo previsto, no entanto irritava-me a demora com que os minutos passavam e o que era obrigada a fazer para o conseguir. Não importava, os fins justificavam os meios, e esses fins eram o meu Tudo.

“Que te deixa presa na sagacidade do que queres.”

A tecla errada revibrou no ambiente denso do palácio, e um rosnar furioso fez-se ouvir. Enganara-me novamente, sempre e repetitivamente no mesmo e diabólico compasso. Tirei as mãos timidamente do piano, deixando-as descansar no colo, pronta para ouvir o meu mestre criticar e ofender-me.
O que fazer? Detestava aquele instrumento, e aquelas melodias alegres que me obrigavam a encenar e a tocar para a corte, num tom idílico desprezível. Nada mais eram que hipocrisias. E eu queria a verdade, queria o som suave e triste que manipulava e, por fim, despedaçava a alma.

“Sussurra-te pecados destemidos, actos dramáticos desentendidos”

Ergui-me do banco, antes que o meu mestre me impedisse e fizesse repetir toda aquela tortura até não existirem quaisquer imperfeições. Não voltaria a repetir a proeza, pelo menos com aquele ser nauseante mergulhado em perfume de narcisos. Dar-lhe-ia a conhecer o verdadeiro e sublime acorde dos anjos. Nada me faria mais feliz, nada me faria mais viva e nada me faria mais imortal.
- Onde ides, Senhora? – Perguntou-me Amaranto.
- Se me quiser seguir, mostrar-lhe-ei algo por que se irá apaixonar – declarei, escondendo o sorriso que senti, delicioso de prazer, florir nos meus lábios e brilhar nos meus olhos de esmeralda. Ao fim de tanto tempo, era só a sua voz que desejava ouvir, o seu canto acetinado.
- Ao que se refere?
- Limite-se a seguir-me e revelar-lho-ei.
O que mais poderia ele fazer? Poderia ser o meu enfadonho e teimoso mestre de piano, todavia a minha pessoa era a herdeira do que o rodeava, a primogénita e única filha dos senhores do condado, durante séculos.

“Que desejas por os temeres.”

Seguimos por um corredor claro, repleto de retratos antigos e inundado por uma luz que seria a do Sol. Nesse momento esses vagos pormenores eram supérfluos. A minha fome aumentava à medida que me aproximava de uma das salas de arrecadação que raramente era visitada, sem ser por mim, e pelos convidados que, por vezes, guiava até lá, no intuito de agradar, mais do que algumas vez imaginaram ou desejaram. No simples preâmbulo de um acorde, elevavam-se ao céu e, com sorte ou sem ela, não regressavam, pois tornavam-se eternamente meus.
Abri a porta bordejada a dourado e entrei, ouvindo o retinir ansioso dos meus saltos abafarem-se na camada de pó que cobria o chão. Não eram já visíveis as marcas da minha última visita, mas o meu grande amor encontrava-se lá, esperando desejoso por mim.

“Oh! Não sentes, não ouves, não vês, na tua ânsia descabida de mortal!”

Ouvi a porta a fechar-se atrás de mim. E sabia que fora ele a fazê-lo. O meu mestre de piano olhava-me curioso, e intimamente receava. Para ele a porta fechara-se sozinha, talvez com uma forte corrente de ar, que por nenhum de nós fora sentida. Eram pequenos pormenores que o descuido e a insensatez deveriam ter levado em conta, mas não o fizeram.
Um sorriso audacioso crescia-lhe nos lábios de uma forma que se me afigurava inebriante. Retribui-lho. Nada como abrir o apetite aos outros, quando o nosso está já faminto. É da forma que será agradável para os dois... por poucos segundos.
Avancei por entre a desarrumação da ampla sala e pelos lençóis fantasmagóricos que cobriam a mobília secular. Incentivei-o a fazê-lo também. Como era divertido senti-lo olhar-me daquela forma tão peculiar de expectativa! Definitivamente, esperava-o uma grande surpresa.

“O Tudo é florido, mas quando murcho é um desengano sem mal.”

Finalmente, a sala chegou ao fim. Uma baixa e larga cómoda poeirenta, com rebordos talhados primorosamente, repousava encostada à parede, e, sobre ela, jazia adormecido o meu amante no seu pequeno caixão negro, forrado de veludo vermelho.
O silêncio era tudo o que parecia rodear-nos naquela atmosfera pesada de semi-escuridão. Mas só os inocentes e descuidados se fiam nas aparências. Eu sabia o que se enclausurava naquele mausoléu da realeza e Amaranto estava prestes a descobri-lo. Muitos pensariam que não da melhor forma.
Mas o que sabiam os anciões que dizem dominar o que é fervoroso na sabedoria? O facto é que não o sei, mas uma coisa é certa, a vida que têm não supera a dos ignorantes que nada sabem e que são felizes. Era o que se passava com este pianista, pensava saber o que se iria suceder. O seu erro guiá-lo-ia ao nada do vazio, como um alquimista que se engana no ingrediente e não cria a Pedra Filosofal, mas um veneno que traçará o fim do que um dia começou.

“O prenúncio aproxima-se, e o canto de sereia aguarda por nós.”

O mestre de piano, apesar de não ter já a certeza de o poder chamar assim, observou-me inquieto, enquanto eu retirava aquele doce instrumento musical do seu lugar de repouso. Era negro como as vestes da morte, e brilhava no tom intemporal da sua foice, tal como os meus cabelos dourados.
Deixei-me ficar de pé, acariciando-o levemente antes de o levar ao ombro. Como me chamava intensamente, e como eu o desejava mais que ardentemente! Tão doce e suave, tão cruel e mortal, o meu etéreo violino negro.
Toquei levemente com o arco nas cordas esticadas que me embalavam e esperei, esperei por um sinal que não se demorou a vir ao meu encontro. Senti um toque frio na minha face, a mão de Amaranto. Nesse momento, o arco deslizou num tom fino e prolongado, fazendo saltar o meu coração, por vezes parado. Os meus lábios formaram uma palavra raramente pronunciada, enquanto tocava a pendente melancolia da música, sem suster o deleite que me invadia, o que levou o meu mestre a beijar-me a têmpora. No entanto, o “imploro-te” não se destinava a ele, mas sim ao meu amado suserano.

“Ressoa então sinfonia do alento, para que te oiçam no teu acolher.”

Os meus olhos estavam fechados quando, pouco depois de sentir uma mão na minha elegante cintura, ouvi uma tentativa de resfolegar, todavia uma tentativa infrutífera. Abri-os. Queria ver aquilo a acontecer.
Amaranto fitava-me horrorizado, apesar de só ver a beleza de um par apaixonado: uma jovem dama caída do céu e o seu conjugue agora quase visível na sua palidez. O horror do mestre de piano provinha das dores que lhe banhavam o corpo, rasgando-lhe as entranhas pútridas, devorando cada pedaço que nunca mais seria seu. Era aquele o toque amaldiçoado dos anjos, o toque das almas.
Os acordes do violino continuaram a envolver-nos num labirinto que se tornava denso e tocável. Em meu redor o invisível tomava forma e apossava-se do que lhe oferecia. Era a última, a milésima alma que era devida ao mundo que se anuncia para lá do que fica para trás.

“A ancestral magia do renascer é tua,”

Parei, exausta com aquela melodia esquartejante. Também a minha alma estava há muito retalhada. No entanto, a imortalidade vivera em mim como um pesadelo que se precede à bonança, e agora, chegara do fim dos mundos alguém para me sarar. Alguém por quem esperara e esperaria infinitamente nas eras do tempo.
Dois braços envolveram-me num abraço. Não era Amaranto. O seu corpo jazia vazio a meus pés, enquanto a sua alma se esvaía para não mais voltar. O sacrifício final tinha sido executado, e os remorsos não se condensavam no meu coração. Só o queria a ele, o demónio que me conquistara na imensidão do Inferno que era aquele mundo. Para sempre juntos, alimentando-nos dos espíritos que se libertavam com o canto sagrado dos deuses. Para sempre nosso seria o acorde das almas.

“E eu sou teu por te pertencer.”

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Anónimo


Passos soam sem os ouvires,
Ecoam num espaço infinito,
Penetrando no fundo da mente,
Mais fundo do que imaginas,
Por entre os lapsos da razão.

Algures banido, ser anónimo,
Coração disperso, fadiga e fome de nada,
No seu olhar espelha-se a dúvida,
A incerteza de que tudo se reflecte
Num incompleto discurso poético.

Vê-se-lhe a sombra, sente-se a forma,
Mas a alma é algo distante,
Perpétua e bela essa falha,
Que devaneios etéreos trespassam
Deixando-a sucumbida na lassidão.

Enigma letal em dose excessiva,
Nessas palavras que hipnotizam a morte,
Um relampejo enganador que lateja
Num véu predestinado
De algo impreciso, desbotado.

Mesquinha cobardia a tua,
Nesse esgar que nada exprime,
Doente, perversa, cruel ansiedade,
Reticente e curioso encanto,
Que fazes lançar em mim.

Pois esse claustro em que te encerras,
É uma máscara que fere,
Fere o mundo, fere-te a ti
Num eterno anonimato que te deixa
Desfeito num corpo por desfazer.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Adeus


Adeus singela flor,
De singela doçura,
Adeus etérea nuvem,
De etérea candura.

Adeus verde prado,
De verde esperança,
Adeus delicada borboleta,
De delicada lembrança.

Adeus colorido arco-íris,
De colorido esplendor,
Adeus cristalino riacho,
De cristalino fulgor.

Adeus graciosa ave,
De graciosa inocência.
Adeus radiante Sol,
De radiante existência.

Adeus azul do céu,
De azul imensidão,
Adeus imortal Ser,
De imortal coração.

Adeus doce fada,
De doce fantasia,
Adeus grandiosa Natureza,
De grandiosa magia.

Adeus...

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Aprendiz

Vê mortal, o caos organizado que a ti pertence. Esse caos é a alma negra de que te queres livrar. Recusas-te a tê-la, quando foste tu que a criaste. És o seu mestre e ela a tua aprendiz. Ensinaste-lhe o negrume em que mergulhaste. Ela simplesmente afogou-te nele, como boa aprendiz. Duplicou os teus ensinamentos, sempre produtiva, e devolveu-tos não requerendo lucros para si própria, mas, no entanto, eternamente com eles marcada. Bela e fiel aprendiz!

E agora queres atirá-la para o poço onde te afogou a teu pedido! Como te atreves, ser malévolo? A alma meramente acedeu aos teus pedidos, entregou-se a ti para teu obsceno prazer! Cruel… Oh! O quão cruel és…

Contudo, a vingança paira, rapina de qualidade. E as traições, essas são puníveis sob as leis do coração. Não substituirás essa alma, não te será admitido. Sentirás o mal que lhe perpetraste, pobre aprendiz que enganaste e usaste. Verás a solidão que é estar vazio. As suas unhas rasgar-te-ão as entranhas, pois lâminas delas fizeste. Os seus dentes, punhais de criação, estrangular-te-ão em sangue jugular. Os seus olhos penetrar-te-ão a mente em pesadelos de tentáculos erosivos que te irão transformar em decadentes destroços.

O facto é que, por fim, aderirá aos teus pedidos, partirá, quando de ti sobrar um mestre decomposto. Salvou-te tardiamente, quando nada mais havia para salvar.

A aprendiz venceu o mestre. O caos não mais é de si escravo. Libertou-se.

És agora imortal, alma minha.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Coração


Sou servo do doce sangue que embalo,
Sou órgão que toca, maldito.
Ressoo para ouvires o meu canto,
Para ouvires os acordes da dor
Daquele bem que desdito
Se dá pelo nome de Amor.

Longe de tudo, perto de ti,
Segredo o pensamento abençoado.
Eis-me então aqui,
Espero avidamente pelo fim
Do dolorido amor predestinado.

E bato, bato, torno a bater;
Insisto por insistir.
Bato insistentemente por viver
No peito que não me quer ouvir.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Mentira


Afirmaste lento o crepúsculo que se te reflectia
Num olhar terno do vento.
Promessa foi que a embalarias nessa sua brisa.
(Oh! Não entendo...)

Mentiste.

Sublime declamaste os versos do coração
Que só por ti amavas.
Cantaste à ninfa que era doce,
Só, na frieza das palavras.

Mentiste.

Beijaste os lábios que desejavam o doce descuido
Só do amor prendado.
Mas corruptas farpas eras tu
No pôr-do-sol velado.

Mentiste.

Voou, por fim, ave livre, dolorosa,
Sem as plumas do carinho.
Prometeste esperar, não esperaste.
Fugiu ela do entardecer triste do seu ninho.

Mentiste.
***
(Dedicado ao dia das mentiras ^.^)