O mundo murchou nas pétalas dos dias e Elliana soltou um suspiro. Só dez dias tinham passado desde que deixara a decadência que se derramara sobre si. No entanto, sentia-a a espreitá-la, algures de recônditos distantes da sua alma, pronta para se apoderar dela novamente. Cerrou os dentes. Queria fazer alguma coisa, mas não sabia bem o quê e muito menos como. Olhou para as nuvens que se amontoavam sobrepostas, empurrando-se com tal violência que um relâmpago se deixou escapar de entre elas, com esperança de salvação. Aquele tom acinzentado não ajudava em muito o seu estado de espírito. Ergueu-se do parapeito da janela, deixando a cortina de tom rosa ocultar um pouco da batalha que se travava nos céus, no preciso momento em que um trovão se propagou sem piedade pela atmosfera, fazendo-a encolher-se, como se fosse ele um severo raspanete ao seu latente estado de espírito.
Elliana era uma simples jovem, ou pelo menos assim pensava, e qualquer um concordaria, não fosse ela, por mais que mero acaso, filha de um conhecido médium e possuidora de dons distintos que perspassavam as visões e as curas dos charlatões. Tirando isso, e uns incomparáveis olhos verdes que lembravam a vegetação amazónica enclausurada dentro de duas esmeraldas, era uma rapariga total e perfeitamente normal. O seu quarto, onde agora se encontrava, tinha um recheio de tom místico, onde se revelava a personalidade de uma adolescente de gostos invulgarmente interessantes. Uma estante que subia do chão ao tecto encontrava-se encostada a um canto, repleta de livros, muitos deles de fachada antiga, onde os pilares sustinham a antiga mitologia dos povos extintos. Sobre a cómoda, enfrente à cama, repousava uma bola cristalina de tom inatamente lilás, por onde se podia ver o desfocar arredondado do resto do quarto. A secretária ficava ao lado da janela, onde se amontoavam ordenada e desprezadamente vários cadernos repletos de infindáveis cálculos que, segundo a sua opinião, não serviam de grande coisa, sem ser tornar cada vez pior, numa intensificação estonteante, o que já estava a decair gradualmente no seu legítimo mundo. Era a evolução que o matava. A evolução e os humanos que a evoluiam sem pensar no apocalíptico e derradeiro golpe que estariam a preparar. Consequências impensadas de quem não faz uso da consciência que lhes é cedida tão gentilmente. No final de contas, nem todos somos marionetas de madeira necessitadas de um grilo falante como consciência, alguns talvez sejam, mas maior parte não.
Elliana guiou-se sem pensar até ao guarda-vestidos e abriu-o. Várias peças de roupa deixavam-se descair pesademente sobre os cabides de madeira, esperando que alguém estendesse a mão para as retirar de lá e serem usadas, no entanto, não era esse o interesse da jovem. O que a levara até ali fora o alto espelho anexado à porta. Olhou-se a si própria de cima a baixo, medindo o seu metro e setenta da altura com um tom desconfiado. Não era aquilo que na realidade desejava ver. Pouco se interessava pela sua camisola azul escura de gola alta com mangas exageradamente compridas que quase lhe ocultavam as mãos, ou mesmo a comprida trança negra que lhe caía até à cintura. Não, o que queria era muito diferente, era tudo o que representava a vida humana, não um conjunto fútil de adereços sem significado. Tocou no espelho com a ponta dos dedos, levando-o a tremeluzir fracamente como se por segundos a sua energia tivesse criado uma espécie de campo magnético à volta dele, levando-o a produzir o que se podia chamar de faíscas.
- Estás aí, meu amor? – Murmurou num tom fraco, mas esperançoso. Quem a visse e ouvisse, pensaria que estaria a admirar a sua própria pessoa naquele reflexo parado, deixando que o verde dos seus olhos profundos e enigmáticos corresse a sua figura magra mas esbelta sucessivas vezes. Mas quem vê para além dos olhos saberia que haveria mais, muito mais por detrás daquele olhar angustiado. Não veria o egocentrismo de quem se admira, nem a loucura que nada tem de louco de quem conversa sozinho por falta de companhia (e que mal tem os que o fazem? Possivelmente é tremendamente melhor que enclausurar pensamentos, deixando-os consumirem-nos, para, no final, só restar uma concha vazia). O espelho soltou um suspiro. Mas como poderia um espelho suspirar? Um pequeno sorriso abriu-se nos lábios naturalmente avermelhados de Elliana ao ver que, além do suspiro, algo mais estava a acontecer à superfície fria daquele objecto de reflexos e reflexões. A sua imagem ofuscava-se e ondulava, como a superfície de um pequeno lago, retirando a nitidez à imagem da jovem, mas ganhando a sua própria. Um tom escuro foi-se apoderando do reflexo à medida que as ondulações se amenizavam. Consigo, uma figura alta, com as feições ainda distorcidas. Os olhos de Elliana brilharam ao ver por fim o que tão profundamente desejava. Reflectido no espelho encontrava-se um ser de tez pálida e orelhas em forma de bico. Os seus olhos eram de um tom pouco vulgar, lilases, como raramente ou nunca se vê. Trajava-se de negro, com uma espécie de casaco comprido, e os cabelos compridos caíam-lhe pela frente dos ombros.
- Elliana... – murmurou. – Minha doce Elliana...
A sua mão tocou do lado de lá do espelho e a jovem pôde ver a ponta dos seus finos e pálidos dedos espalmarem-se um pouco, numa tentativa vã de tentar passar para o seu lado. Correspondeu-lhe. As suas mãos tentavam desesperadamente unir-se, para sempre se possível, no entanto, existia aquele entrave que os separava por mundos.
- Como estás, Elliot? – Quis saber a jovem, dando um leve beijo ao espelho frio, totalmente desprovido de emoções. Mas isso não lhe interessava, só queria que o seu príncipe o sentisse. Não lho podia dar, não podia sentir os seus lábios juntos a si. Mas como o desejava ardentemente!
- Mentir-te-ia se respondesse que estou bem, mas sem ti isso é impossível. Parece que a vida me escorre por entre os dedos, inescapavelmente. As lágrimas vertem-se sem eu querer nos momentos mais inconvenientes e... – a frase ficou pendente, enquanto olhava para o cinzento céu do seu mundo, indeciso.
- O quê, Elliot? O que se passa?
O ser do outro lado do espelho soltou um profundo suspiro e cerrou os olhos, deixando que um sorriso triste o invadisse.
- E quando olho para ti, quando sei que estamos tão próximos, imagino mil coisas para tentar escapar daqui, no entanto, a impossibilidade reflecte-se em cada pedaço deste espelho. – Uma ponta de raiva brotava das suas palavras, enquanto uma brilhante lágrima mal contida se escapou dos seus olhos lilases. Os olhos de Elliana acompanharam a lenta descida da lágrima pela pálida face, e também a sua vista se ofuscou no seu próprio choro de lamento. Como era possível que um tal mal conseguisse sobreviver depois de separar um par de amantes da forma mais cruel vista? Próximos mas distantes... seria aquela uma maldição eterna?
Encostou a testa ao vidro frio, deixando-se derramar em lágrimas, com pequenos soluços de tristeza.
- Desculpa se te fiz desesperar, Elliana. Há sempre uma forma. Nunca digas impossível quando vês o impossível acontecer. Somos de mundos diferentes, de terras distantes, mas juntos ficaremos, os nossos sentimentos são unos e os nossos corações estarão sempre juntos.
Elliana queria acreditar nas suas palavras com toda a sua força, mas aquela separação era demasiadamente vil. Destilava-lhe o coração, escortaçava-o sem amor ou piedade.
- Amor, olha para mim – pediu a voz calma de Elliot. Elliana não foi capaz de faze-lo. Continuou a chorar consigo própria, sozinha na sua solidão. Não sabia se suportaria aquilo por muito mais tempo. Não sabia se voltaria a conseguir olhar para aquele lilás enigmático por quem há muito se deixara levar num amor sem encalço. - Amo-te muito, não te esqueças disso – murmurou-lhe Elliot ao ouvido, como se estivesse ao seu lado. Elliana ia levantar a cabeça, para o fitar e absorver toda a sua beleza para um retrato na sua mente, mas algo a deteve, levando-a a olhar para trás. Ouvira passos vindos da porta do seu quarto.
Fechou a porta do guarda-vestidos repentinamente, correndo para a sua cama e deixando-se cair ao lado de um livro que colocou rapidamente à frente da sua face, para que as lágrimas não fossem notadas. Não queria que mais ninguém a visse assim. A porta do quarto abriu-se com um pequeno chiar de aviso, e a voz do seu pai fez-se ouvir num tom espantado.
- Ah! Estás aqui! Pensei que tivesses ido sair com a Gabriela! Elliana engoliu os soluços e tentou responder num tom normal, apesar de não ter a certeza de o ter conseguido fielmente.
- Está mau tempo, não gosto de sair com trovoada – limitou-se a responder, não tirando os olhos do livro. Não era uma mentira, mas porventura não seria toda a verdade, muito pelo contrário.
- Hum... também imaginei que assim fosse. Bem, vou deixar-te ler em paz. Mais logo espero-te para o almoço, sim, filha?
- Sim, sim – respondeu, pedindo a todos os seus deuses para que o pai não se demorasse.
Para seu alívio, ouviu a porta a fechar-se, agora silenciosamente, e baixou de imediato o livro. O seu pijama verde marinho balançava-se atrás da porta como um fantasma indolente. Levantou-se de um salto, precipitando-se sobre o armário. No entanto, quando o abriu, só o seu próprio reflexo se lhe dirigiu com um olhar mais que abandonado. Elliot tinha desaparecido, naquele seu mundo tão diferente mas tão igual ao seu. A sua mão esquerda, húmida das lágrimas, deixou-se escorregar por aquela superfície fria. O que poderia fazer?