quarta-feira, 15 de julho de 2009

Pluma Escarlate

(Conto que escrevi há cerca de um ano, para participar no "concurso" Pulp Fiction à portuguesa, da SdE e como nada mais há a fazer com ele... aqui fica, para quem quiser ler)

Parte I

A nau navegava em alto mar, enquanto a sua bandeira se balanceava livremente pela brisa marítima. O seu fundo era negro e sobre ele repousava um símbolo branco, uma caveira. Era um barco pirata.
Pluma Escarlate, de verdadeiro nome Alexandra Vasconcelos, caminhou pelo convés do seu navio, Flecha Dourada, observando os inimigos que se mantinham a uma distância considerável. Os canhões estavam carregados e prontos a disparar. Afundá-los-iam sem piedade. Ninguém mais tinha o direito de correr aquele mar com intuito de roubar outros barcos, muito menos os malditos corsários do Marquês de Tomar.
- Alonso! – Gritou alto, num tom de comando, sem tirar os olhos do navio que se encontrava a menos de duas milhas deles.
Um homem de paleta e uma cicatriz que se derramava pelo lado esquerdo da face aproximou-se com passos rápidos. O seu único olho era de um verde forte e perscrutou a sua capitã meditativamente.
- O que pretendes fazer? – Perguntou, desviando o olhar para o navio longínquo.
- O que achas? O traidor do Marquês há-de parar de mandar barcos para atacarem as caravelas que partem de Lisboa. Malditos espanhóis… – rosnou, com um esgar de raiva.
O Marquês de Tomar era um homem rico que vivia nos arredores de Sines. Conhecido por ser perigoso, um inimigo que ninguém gostaria de ganhar. Todavia, Alexandra repugnava-se com o que ele fazia ao seu próprio país, a mando de Espanha. E antes dela se repugnar, repugnara-se o seu pai, o Conde Vasconcelos. Fora tal a sua revolta que acabara na forca, e as suas terras confiscadas.
- Quais são as ordens?
- Aproximem-se dele. E quando estivermos suficientemente perto, abram fogo contra aquela escória.
- Sim senhora, vou passar as ordens – declarou Alonso, afastando-se.
Alexandra virou também as costas ao navio pirata e dirigiu-se ao seu camarote com passos largos e decididos. Era uma mulher ainda jovem e bonita. Os poucos que sabiam da sua dedicação ao mar e da sua guerra aberta contra o marquês censuravam-na e chamavam-lhe insana. Mas ela pouco ou nada se importava, aquelas palavras só a faziam sorrir e honrar-se.
A sua alcunha nos altos mares era Pluma Escarlate, pela pena vermelha que trazia presa no chapéu negro tal como todo o seu traje. Escolhera-o em honra de seu pai, pois ele fora uma ave a quem injustamente roubaram a liberdade. A sua espada, outrora também dele, permanecia presa à cintura na sua devida bainha, esperando sangue. E talvez o tivesse mais cedo do que esperava.
O seu camarote era um espaço amplo e limpo, com poucos objectos pessoais. Dessa forma dirigiu-se directamente ao baú, aos pés da cama, que abriu com cuidado, dando a mostrar algumas roupas que já não usava: vestidos. Revolveu-os e retirou do seu interior uma caixa onde estavam guardadas duas pistolas, as respectivas munições e um saquinho de pólvora. Carregou as armas e prendeu-as no cinto. Depois olhou para um grande retrato que se encontrava encostado a uma das paredes de madeira do camarote. Nele mostrava-se um homem de espada na mão e olhar decidido, de aparência justa e corajosa.
Esta é por ti, pai. Mais cedo ou mais tarde, irão ceder, pensou. Fez uma pequena vénia ao quadro e saiu.
- Senhor Almiro! O que me diz dos nossos inimigos? – Perguntou, lançando um olhar à gávea do mastro principal onde se encontrava um homem já com certa idade, um dos mais responsáveis e fiéis marinheiros.
- É uma nau portuguesa!
Alexandra franziu as sobrancelhas intrigada. Normalmente as naus dos corsários eram de fabrico espanhol. Algo de estranho se passava ali. O que andariam a tramar?
As milhas que os separavam depressa se aproximaram, colapsando-se em poucos metros. E isso preocupou-a ainda mais. O rosto dos marinheiros da nau inimiga não eram assustados ou desorientados, não corriam de um lado para o outro a precaver-se contra o assalto de outro barco pirata. Não... esperavam o Flecha Dourada de armas apostas, armas invulgares para simples corsários.
Quando o primeiro canhão disparou contra a nau e fez o seu barco estremecer, Alexandra percebeu o que se passava. Era uma armadilha!
Os seus inimigos posicionaram as espingardas e começaram a disparar contra eles, enquanto de ambos os barcos voavam tiros de canhão certeiros e destruidores.
- Alonso!!! Temos que sair daqui, imediatamente! – Gritou, correndo em direcção à popa. No entanto insurgia um problema. No meio da confusão, ninguém ouvia a sua voz.
Praguejou alto. Aquela escumalha estava a desfazer-lhe o navio! Não tinham outra saída sem ser combater. E dentro do próprio navio estariam a perder contra as espingardas dos inimigos. Tinham que tentar algo mais ousado.
- Abordagem!!!
Vários olharam para a capitã quando a viram a saltar para a amurada com uma das pistolas na mão esquerda, enquanto que a outra segurava uma corda áspera. Muitos imitaram-na de imediato.
Com o devido balanço, voaram de um barco para o outro, aterrando em vários pontos da nau. Alexandra encontrava-se perto do leme, onde a esperavam vários marinheiros que, agora de perto, não lhe pareciam minimamente corsários. Estavam demasiado organizados. E não havia muitas mais hipóteses.
Subitamente apeteceu-lhe morder o chapéu de raiva ao perceber no tamanho da armadilha em que tinham caído. Estavam a atacar um barco da guarda real. Maldito fosse o Marquês! Aquela peste suína nojenta...
Fez pontaria e disparou um tiro contra o homem que estava mais perto de si e que ficara momentaneamente aparvalhado ao ver que o aclamado Pluma Escarlate era uma mulher. O homem caiu para trás com o impulso, levando a mão ao ombro direito, agora ensanguentado.
- Capitão... – gemeu, enquanto as dores lancinantes se propagavam pelo braço que segurava a espada.
Ao ouvir estas palavras Alexandra olhou em volta e disparou outro tiro, mas o alvo esquivou-se, desembainhando a espada e atacando-a com rapidez. Com aquela proximidade as espingardas não eram as armas mais propícias.
Recuou vários passos para evitar que a lâmina a golpeasse e imitou-o, aparando o último golpe com força.
Ambos se fitaram. O seu opositor não deveria ter mais de trinta anos. Pouco mais velho que ela, mas bastante audaz na esgrima. Sorria-lhe, mas permanecia cauteloso, agora que também Alexandra o atacara.
- Capitão Henrique, quais são as suas ordens? – Inquiriu um dos marinheiros, ou talvez fosse mais correcto chamar-lhe soldado.
- Capturem-nos! O Marquês quer-los vivos, incluindo o seu capitão. – Os seus olhos não se afastaram de Alexandra nem por um segundo. – Mas desse trato eu.
Com esta ordem o soldado dirigiu-se para o convés desembainhando também a sua espada, deixando-os a defrontarem-se.
- Cometeu um erro grave com este ataque – declarou, sem desmanchar o seu sorriso algures de triunfo, algures de entusiasmo e também algures de certo receio. Estava a pisar um terreno pouco seguro. Nunca lutara com uma mulher, mas já ouvira falar de quem o fizesse, e os resultados não tinham sido dos melhores. Era muito mais perigoso defrontar uma mulher com uma arma na mão do que uma dúzia de soldados preparados para a guerra. E quando essas mulheres têm preparação suficiente para defrontar um homem treinado num mano a mano... o melhor seria precaver-se.
- Não preciso que mo diga, monsieur. Mas acautele-se, porque ainda não tem a vitória nas mãos.
Dito isto partiu num ataque rápido e ágil. Estava em vantagem pois o homem pouco estava habituado a lutar sobre uma plataforma instável. O mar estava a seu favor.
Fê-lo recuar até à amurada com sucessivos e fortes golpes que tinham uma única finalidade: desarmá-lo. Não o queria matar, pois isso sim, era declarar guerra aberta a Portugal. E se isso acontecesse, seria o seu fim e o da tripulação. Assim como da sua própria pátria.
Mesmo assim, tinha que admitir que o homem era forte e tenaz. Estava a deixá-la cansada e isso raramente acontecia.
Por fim, com dois últimos golpes, o primeiro vindo da direita e o segundo vindo de baixo, a espada do capitão saltou-lhe da mão e caiu ao mar, desamparada e sem retorno.
- Agora, ordene aos seus homens para que parem de lutar e se rendam – declarou Alexandra num tom autoritário.
- E porque faria isso? – Apesar de desarmado, o capitão da guarda ainda a desafiava.
- Para o bem de todos eles, não quero ver ninguém morto. Se não o fizer, a minha piedade para com eles deixará de existir. E se vir bem, mesmo que os seus homens estejam melhor armados, os meus têm uma preparação que ultrapassa qualquer guarda. Estamos em vantagem. – Enquanto dizia isto a sua espada não se afastou do pescoço do homem, e um simples olhar bastou para confirmar as suas palavras e a realidade.
Muitos dos soldados encontravam-se caídos no convés, não se sabia se mortos ou vivos. Alexandra esperava que maior parte estivesse vivo para o bem de todos.
Após alguns segundos de expectativa, em que o capitão pesou os prós e os contras, a resposta acabou por chegar.
- Como quiser.
- Foi uma escolha sábia da sua parte, capitão Henrique – frisou as duas últimas palavras, denotando o conhecimento do seu nome. Afastou-se alguns passos sem deixar de lhe apontar a ponta afiada da espada. – Agora, dê a ordem.
E ele assim fez. Ao fim de cinco minutos as lutas tinham cessado, as armas dos soldados jaziam abandonadas no convés, e muitos deles olhavam ultrajados para o seu capitão que fora inevitavelmente derrotado por uma mulher pirata.
- Senhores! Regressem ao vosso navio e preparem-se para partir! – Falou Pluma Escarlate para a sua tripulação, de forma pouco alegre. Aquela não fora a vitória desejada.
Esperou que maior parte dos seus marinheiros tivesse já embarcado antes de embainhar a espada e se afastar do capitão da guarda real.
- Pluma Escarlate! – Chamou este aquando Alexandra recebia a corda que a faria saltar para o outro navio. – Não me diz pelo menos o seu nome?
- O que lhe interessa essa informação? – Não se voltou para ele quando fez esta pergunta.
- Penso que seja justo, também sabe o meu – fez notar.
- Muito bem, capitão Henrique. É bonito ouvir os outros falarem de justiça quando não a praticam – disse ironicamente, olhando para o homem de soslaio. – Mas o meu nome é Alexandra Vasconcelos. Já agora esclareça-me uma suspeita, quem pediu a El-Rei D. João III que vos enviasse?
- O Marquês de Tomar. – Era uma resposta simples, e mais que óbvia e o homem não lhe pedira sequer uma explicação pela questão.
Lançou-se de um barco para o outro, acabando por ser ajudada a subir para dentro do Flecha Dourada por Alonso que trazia um arco e uma aljava presos às costas.
Do outro lado, o capitão Henrique segurava algo que lhe parecia vagamente vermelho e além disso, familiar. A sua mão retirou o chapéu da cabeça, mostrando um lenço negro que lhe prendia os cabelos compridos. A pluma tinha sido decepada! Premiu os lábios, contrariada com aquele incidente. A espada do homem tinha sido mais rápida do que dera a parecer.
Por fim, mirou a nau e o seu capitão antes de se retirar para o camarote. Mal sabia ela que aquela não seria a última vez que o veria.
Nos dias que se seguiram navegaram até França. Precisavam de se reabastecer, e havia feridos que necessitavam de um tratamento mais cuidadoso. As balas dos guardas portugueses tinham crivado as suas mazelas.
Durante a madrugada de uma dessas noites de viagem, Alonso foi encontrar a sua capitã quase a destruir a amurada com murros de raiva. Não lhe agradava aquele estado de espírito tão tempestuoso.
- Alexandra, o que se passa? – Quis saber, pousando-lhe a mão no ombro. O seu único olho brilhava intensamente, rasgando a noite estrelada como um punhal. Um fenómeno pouco natural e de certa forma assustador para maior parte das pessoas. E apesar de ter só um olho, era o que melhor via de entre todos.
- Nada, estou só um pouco ansiosa – resmungou, fitando o mar na sua negritude calma. A Lua erguia-se no alto, em quarto minguante, marejando-os com um pouco da sua luz.
- Claro que sim!
Alexandra praguejou para si por entre os dentes.
- A nossa última incursão fez demasiados feridos – murmurou.
- Não podíamos ter imaginado que era uma emboscada...
- Mas podíamos ter suspeitado! – Gritou a capitã do navio, furiosa. A sua face era marcada por um esgar de raiva. – Podíamos ter recuado, podíamos... AHHH!!
Um novo e violento murro voltou a abater-se sobre as bordas do navio.
Alonso encolheu-se ao ver aquela demonstração de fúria. Alexandra precisava de ser apaziguada. Pousou a sua mão sobre a dela, compreensivamente.
- Alexandra, tu não és Deus. Não podes adivinhar, nem guiar o destino dos outros. Nem sempre podes navegar e sair vitoriosa. O mundo está contra os justos, está contra ti, dificultando-te a tua missão, ou talvez, quem sabe, auxiliando-te de uma forma rebuscada – levou aos lábios a mão da sua capitã e depositou-lhe um pequeno beijo. – Esta missão nem deveria ser tua. Olho para as tuas mãos e vejo a delicadeza de uma flor. Este mundo não é o teu. Não deverias continuar no mar.
- Vou acabar o que comecei – declarou friamente, tirando bruscamente a sua mão de entre a do amigo. Conheciam-se desde crianças, tinham um ano de diferença. Ele perdera o olho no dia em que tinham invadido a casa do Conde Vasconcelos para o prender. Ajudara-a a fugir, impedindo que fosse também julgada e morta.
- O Marquês não irá parar! Mandou uma nau contra nós no outro dia. Daqui a umas semanas mandará uma armada! Estás a condenar-nos à morte! – Finalmente os seus verdadeiros pensamentos vieram à tona.
- Eu não obrigo ninguém a ficar. Se ele os mandar, deixá-los vir. Irei ao fundo com o navio do meu pai, é a única e real memória que me sobra e ficarei com ela até ao fim. Se morrer antes disso, são livres de ir à vossa vida. Como já disse, não vos obrigo a nada.
Voltou-lhe as costas imponentemente, com a raiva a fervilhar no seu interior. Nesse momento tinha um único destino: subir à gávea e ali passar a noite a meditar no seu próximo passo.
Ao fim de quinze dias regressaram à costa portuguesa. Na sua ausência uma outra nau tinha sido atacada e saqueada pelos corsários espanhóis. Não tinham deixado um único sobrevivente para contar a história, logo os préstimos indesejáveis dos seus actos seriam oferecidos ao Flecha Dourada e a toda a sua tripulação. Ou seja, as culpas recairiam sobre si e os seus companheiros.
Depois de muito pensar, Alexandra decidira-se. Daria mais uma oportunidade ao seu navio de enfrentar e derrotar de vez o Marquês de Tomar. Se isso não acontecesse, tomaria medidas mais drásticas, apesar disso lhe poder custar a vida.

5 comentários:

Francisco Norega disse...

Como já te disse várias vezes, acho que está soberbo! :)

Brid disse...

Já li este! :) Só falta o outro eheh

Ai Letozinha... o que era de mim sem ti? ^^ Obrigado pelas tuas palavras, sabes que elas têm muito valor para mim. És uma grande amiga, e espero que isso continue por muito tempo :)

Gosto muito de ti, senhora das trevas xD

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Obrigada aos dois ^^

*abraços*

Carla Ribeiro disse...

Como já te tinha dito, gostei muito mesmo deste conto e acredito que, num meio diferente, terias chegado muito alto com ele. Continua a escrever assim, porque, apesar de todas as desilusões, o teu talento é mais que evidente e eu vou continuar por perto para te ler! :)

Hail and well met!

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Obrigada, Raven ^^

Beijinhos!