terça-feira, 28 de julho de 2009

Pluma Escarlate

Parte III

Uma luz difusa entrava-lhe pelas pálpebras fechadas, acordando-a de forma lenta e suave. Todavia parecia que alguém lhe tentava arrancar o coração ao mesmo tempo que isto acontecia. Obrigou-se a abrir os olhos, pronta a desembainhar a espada e esquartejar o estupor que lhe causava a dor.
Ao fazê-lo, a luz laranja de um candeeiro ofuscou-a momentaneamente, mas o que vira nesse relance de segundo não lhe agradara. Quando se habituou à luz, confirmou as suas suspeitas pouco felizes. Estava deitada num camarote pequeno, aconchegada numa cama confortável. Sentado ao seu lado, um homem de meia-idade observava-a atentamente, como se esperasse que ela desse um salto e fugisse.
No momento em que os seus olhos se cruzaram, ele levantou-se da cadeira e dirigiu-se para a porta do camarote. Saiu e fechou-a à chave sem uma palavra.
Alexandra desviou o cobertor que a aquecia e tentou levantar-se, mas uma dor invadiu-a como um relâmpago, cortando-lhe a respiração. Deixou-se cair para trás, mordendo os lábios para abafar qualquer género de lamento. Começava a lembrar-se do que acontecera. O denso nevoeiro, o combate com o capitão Henrique e a flecha…
Olhou para si e para o seu estado lastimoso de vulnerabilidade. Alguém a tinha despido e colocado ligaduras em redor do tronco. Sentiu a sua face ganhar um tom rubro de vergonha e fúria.
Uma chave voltou a rodar na fechadura. Os seus sagazes olhos azuis fitaram a porta, enquanto ela se abria sem pressas. Um olhar simpático fitou-a daquele local. Era o capitão Henrique.
- Posso?
- Não sou eu a comandante do navio, não é a mim que tem de pedir se pode ou não – rosnou Alexandra, desviando o olhar para o tecto.
- Aceito isso como um sim, capitã Vasconcelos – declarou com um encolher de ombros, fechando a porta e avançando até à cadeira onde antes estivera o outro homem acomodado.
Durante alguns segundos impôs-se o silêncio. Alexandra não se dignava a falar-lhe e Henrique simplesmente esperava que ela o fizesse. Pairava o impasse no camarote. No entanto, numa questão de impulsividade, ele quebrou-se.
- O que vão fazer comigo? – A sua pergunta era autoritária, não queria dar parte de fraca. Continuou a olhar para as madeiras bem tratadas do navio, irresolutamente.
- Isso depende do que me contar.
- Sua escória mesquinha… está à espera que eu traia a minha tripulação, não é?! Prefiro morrer a vê-la nas suas mãos asquerosas…
- Imagino que prefira – interrompeu o capitão, pacientemente. – Mas não é isso que quero ouvir.
Alexandra mirou-o de soslaio. A desconfiança marcava-lhe pequenas rugas na testa. Se não era aquilo que o homem queria saber, então o que seria? Não via mais nenhum motivo de conversa entre eles.
- Gostava que me esclarecesse do porquê destes ataques. Há dois dias atrás fez graves acusações ao Marquês de Tomar, acusações essas em que não vejo fundamentos.
Os olhos castanhos do capitão fitaram os seus de forma inquiridora.
- A que ataques se refere? – Perguntou a capitã do Flecha Dourada, tomando uma atitude de plena ignorância, desviando o olhar.
- Aos que o seu navio perpetua às embarcações portuguesas.
- Não sei o que quer dizer com isso. Penso já ter referido o facto de não ter sido o meu navio a fazê-lo. Foram os seus amigos! – Uma dor perpassou-lhe o peito ao elevar a voz, o que a fez tentar acalmar-se e mentalizar-se de que não valeria de nada começar aos gritos. Só pioraria a situação em todos os sentidos. Tinha que se comportar. Talvez assim conseguisse congeminar uma forma de escapar.
- Eu não confraternizo com piratas…
- Mas o Marquês confraterniza! Com piratas e espanhóis que estão mortinhos para devorar Portugal – rosnou, com um esgar de raiva. – Não espero obviamente que acredite na minha palavra, mas é esta e mais nenhuma. Agora pare de me importunar com perguntas inutilmente hipócritas.
- Tem provas do que está a afirmar?
- Não acha que se tivesse provas não as teria levado de imediato a El-Rei?! Pouparia tempo, dinheiro e tripulação! – Quase gritou, com os olhos a coriscarem. – Agora, por favor, saia. Não me sinto com disposição para isto.
- Não, ainda não vou sair. Quero conversar consigo sobre o porquê de estar deitada nessa cama.
- Talvez porque fui capturada? – Ironizou com um revirar de olhos.
- Também. Então falemos do porquê de ter sido capturada, do porquê dessa flecha lhe ter acertado exactamente em si quando a minha nau estava a transbordar de guardas – declarou com um sorriso, cruzando as pernas.
- Não está a insinuar que alguém da minha tripulação me tentou matar, pois não?
- Talvez até esteja – insistiu sobre a indignação de Alexandra. Levantou-se e disse as suas últimas palavras: – Pense nisso, capitã. Dar-lhe-ei o tempo que precisar.
- Desapareça! – Gritou a jovem mulher, erguendo o tronco como se fosse saltar da cama para o espancar. Aquelas maneiras arrogantes enjoavam-na e aquelas insinuações eram descomunais.
- Como queira, mademoiselle – disse, com uma semi-vénia. – Mas pense bem. E por favor, tenha consideração pelo trabalho que o doutor teve. Não queremos que a ferida abra.
- Para me poderem enforcar ainda viva?
- Sinceramente preferia que isso não acontecesse – murmurou, voltando-lhe as costas. E, como pedido, desapareceu porta fora.
Alexandra deitou-se para trás com dificuldade e, por fim, respirou fundo. O que pensava aquele idiota que estava a fazer? Tentar virar a capitã contra a tripulação era um truque infame e muito sujo. Fechou os olhos. Estava demasiado cansada.
Três sóis nasceram depois desta pequena conversa entre capitães. Em nenhum dos dias fora permitida a saída de Alexandra do camarote. Foram-lhe disponibilizadas as suas antigas vestes, lavadas e com algumas costuras. O médico fora visitá-la algumas vezes mas a capitã recusara-se ameaçadoramente a ser vista.
- Parece uma criança – reprovara Henrique, num desses martirizantes dias, o que lhe valera um olhar assassino.
O crepúsculo chegara e Alexandra escutou o capitão entrar com um pequeno tabuleiro de comida no camarote. Era o único que a ia visitar, para além do médico, e só ele tentava com afinco falar consigo.
- Quando é que estão com intenção de me envenenar? – Perguntou sarcasticamente, sem o olhar. Estava sentada junto aos vidros da janela, observando o mar que se deixava navegar por aquela nau amaldiçoada.
Assim, não viu o revirar de olhos de Henrique, só ouviu o seu suspirar impaciente.
- Ninguém a quer envenenar.
- Ah pois é, querem-me enforcar. Agradeço a sua gentileza em me relembrar.
Estava mais calma agora. Já se habituara à ideia de que o cadafalso esperava por si. Por mais que navegasse, nunca fora uma verdadeira pirata, não crescia em si a necessidade de fuga, só a de justiça. E faria todos os possíveis para dar um fim a tudo aquilo, antes de morrer.
- Se é assim que pensa…
Levou o tabuleiro até a uma pequeníssima mesa-de-cabeceira e pousou-o. Nele repousava um rústico copo d’água, uma sopa de bom aspecto e um bocado de pão com carne seca. Era mais que muitos dos marinheiros do navio comiam, mas Alexandra não agradecia. Não queria que a tratassem bem. Não era uma convidada, era uma prisioneira.
- Diga-me mais uma vez – pediu o capitão – o porquê dos seus actos.
- Estou a defender a minha pátria, a fazer justiça pelo meu pai – continuou a olhar o mar aquando o seu murmúrio quase inaudível.
O capitão Henrique nada disse e o silêncio que se instalara entre a sua resposta e o homem fê-la olhar em volta. O camarote estava espantosamente vazio.
Aproximou-se do tabuleiro e pegou no copo d’água. Não chegou a levá-lo aos lábios porque um pequeno objecto amarelado lhe chamou a atenção. Era um pedaço de pergaminho velho que tinha permanecido sossegadamente escondido debaixo do copo. Segurou-o entre os dedos, de sobrancelhas franzidas.
***
Henrique dirigiu-se com passos lentos e pensativos para a proa. Encostou-se à amurada e observou nostalgicamente o clarão alaranjado, mas difuso, que marcava o limiar entre o pôr-do-sol e a noite.
Perguntava-se se os seus actos eram os correctos, ou se estaria a cavar a sua própria sepultura mesmo rente aos pés.
As palavras de Alexandra não lhe soavam a mentiras rebuscadas, muito pelo contrário. Mas não havia forma de se provar a verdade. Ela era considerada pirata, nunca seria ouvida, e mesmo que não fosse, era uma mulher, a quem raramente davam crédito. Ajudá-la poderia significar a forca para si também. No entanto, a sua consciência deixá-lo-ia sossegado noite após noite, depois de a ver enforcada, sem mesmo ter a verdade nas suas mãos? A certeza da sua culpa? A resposta era simples... simplesmente não deixaria.
Levou a mão ao bolso e tirou de lá uma pequena pena cortada rente à penugem. Era vermelha como o sangue que lhe corria nas veias, como a vida que se derramava na lâmina da sua espada sempre que combatia, como um espírito que se esvai quando a sua honra não é reposta.
A escuridão tinha tomado já conta do convés e uns brilhos espelhavam-se já pelo céu nocturno, quando o capitão Henrique deu a sua decisão por totalmente tomada. Não desonraria a sua pátria com actos incalculados, as leis da sua alma manter-se-iam. E o que elas lhe diziam era claro. Todos têm o direito de provar o seu direito à liberdade.
Dirigiu-se ao seu camarote onde deixou que a noite se alongasse. As horas passavam lentas sob a vaga ondulação, mas nelas sorria a esperança.
Por fim, quando lhe pareceu ser o momento exacto, levantou-se e saiu, determinado a fazer o que tinha de ser feito. Com passos calculados de cuidadosos que eram, aproximou-se do marinheiro adormecido que supostamente guardava as armas da Pluma Escarlate: uma mortal espada criada pelos melhores forjadores franceses, e uma pequena adaga de lâmina um pouco curvilínea, com inscrições em Italiano.
O soldado descansava com a cabeça descaída sobre o ombro e a boca semi-aberta num ressonar ronronante. A espada e a adaga estavam abandonadas ao seu lado.
«Isto é que é cumprir ordens…», pensou o capitão, ironicamente, com um revirar de olhos, mas fora bom que assim acontecesse.
Baixou-se lentamente para apanhar as armas. Os seus joelhos estalaram inconvenientemente, fazendo-o conter a respiração. Mas fora uma preocupação vã. O homem não acordaria mesmo que uma trompa bárbara fosse entoada junto dos seus ouvidos.
Resgatou as armas rapidamente e afastou-se em direcção ao camarote da capitã Vasconcelos. Rodou a maçaneta devagar para que não chiasse ruidosamente e abriu-o. O escuro tomava conta do compartimento.
- Capitã? – Sussurrou para o seu interior. Nada conseguia discernir no negrume. – Alexandra?
- Penso não lhe ter dado autorização para me tratar pelo nome próprio, capitão Henrique. – A sua voz era bastante calma o que amenizava a situação. Vinha do seu lado direito.
Perscrutou a escuridão com mais atenção. Junto a si estava uma silhueta esguia, talvez elegante, numa perfeita camuflagem que era as suas vestes. Os seus olhos brilhavam densos num enigma intransponível.
- Peço-lhe as minhas mais sinceras desculpas. Fi-lo inconscientemente – murmurou o jovem capitão desviando o olhar.
- Não peça o que não lamenta, capitão – declarou Alexandra com um sorriso. – Gostava de conversar consigo sobre tudo isto, mas dir-me-á que não temos tempo. Estou correcta?
- Sim, está. Tome, tenho aqui as suas armas e preparei um bote dos mais pequenos para partir.
- Como vai explicar o meu desaparecimento e do barco? – A desconfiança dava agora lugar à incredulidade. – O que lhe vai acontecer?
- Preocupe-se consigo, capitã. Tenho todos os passos planeados. Ordenei para que um dos prisioneiros fosse deixado à deriva no mar. O bote foi preparado para isso, supostamente.
- Prisioneiros?
- Ninguém do Flecha Dourada, descanse – garantiu.
Deu passagem a Alexandra enquanto esta colocava a espada e a adaga no cinto. A Lua brilhava redonda no seu oceano negro, iluminando-os vagamente. Observou-a pelo canto dos olhos. Uma mulher tão bonita e tão séria, com aquele destino nas mãos. Os anjos eram cruéis.
- Muito obrigada, capitão – disse-lhe com sinceridade. – Provar-lhe-ei a verdade. Se não o conseguir, eu própria me entregarei.
O homem ignorou-a.
- O seu navio partiu em direcção ao Sul. Se quiser poderá segui-lo. Pela manhã seguiremos para Norte. Se nos voltarmos a encontrar espero que não seja nas mesmas circunstâncias. – Levou a mão ao bolso e retirou uma pequena bússola já velha com um ponteiro em metal. Junto vinha uma pequena pena vermelha. – Penso que vá precisar disto, Pluma Escarlate.

3 comentários:

Roberto Bilro Mendes disse...

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Roberto Mendes

Klatuu o embuçado disse...

Sem dúvida, é uma bela narrativa...

Dark kiss.

Francis disse...

Muito interessante seus contos cara. Aproveitei e add seus blog na lista dos meus blogs relacionados, ok?
Depois passa ai.
www.escritocomsangue.blogspot.com

Também escrevo algumas coisas.
Sangue nos olhos irmão!