Como é peculiar termos a sensação de que algo de estranho se sucede sem termos noção disso, que o tempo é inamovível, mas que, contudo, consegue manipular-se e revestir a vida de ignotos acontecimentos. Assim era com aquele cacifo que, inúmeras vezes, passou despercebido a centenas e milhares de seres preocupados com a sua frágil centelha de atenção que tão intencionalmente esqueciam desatentamente de tanto a recordar. Era simples, como qualquer um, encaixado entre outros iguais nos seus invólucros exteriores; era de ferro, já gasto pelo tempo, no entanto resistente a qualquer género de investida violadora da sua privacidade. Além disso, era especial, como tudo o que nos rodeia.
Alexander, de primeiro nome, mas poderia ser outro qualquer, sendo que um nome é só um factor de reconhecimento poucas vezes reconhecido, lia o seu jornal diário, que fora já de outros, pois encontrara-o no longo banco velho onde se sentava todos os dias, esperando pelo comboio da manhã que o levaria ao emprego, um edifício enorme, no centro de uma cidade atarefada consigo mesma. A sua rotina era sempre e todos os dias a mesma: levantava-se, tomava um duche, vestia-se, comia uns cereais vulgares e partia para a estação num passo apressado, sentando-se depois naquele despido banco onde o esperava o tão amável jornal com notícias desinteressantes.
Encostou-se para trás e suspirou. Sentia-se cansado mesmo sem ter feito nada para que tal acontecesse. Pousou o jornal no banco e olhou em volta: sempre as mesmas caras desconhecidas que se passeavam continuamente em intervalos regularmente irregularizados.
Olhou mais para além, para perto da saída da estação, onde ficava o local de venda de bilhetes e dos cacifos. Pela porta envidraçada entravam várias pessoas. Entre elas, uma chamou-lhe a atenção. Estranhamente a primeira coisa que viu foram uns sapatos envernizados com um brilho frio que se projectou até aos confins dos seus olhos. Com a aproximação, uma ondulante capa negra foi-se desvendando, com a gola erguida, ocultando a face do seu proprietário. Um chapéu antigo ocultava-lhe os olhos, fazendo lembrar a Alexander os detectives particulares das suas fantasias de criança.
O enigmático indivíduo aproximou-se de um dos simples cacifos com passos longos e parou num momento hesitante, que causou uma enorme expectativa a Alexander. Quem seria? O que iria fazer?
A sua mão aproximou-se do cadeado do cacifo e abriu-o. Alexander não vira qualquer chave! Teria sido alguma ilusão? Estaria a precisar de uns óculos? Ou simplesmente alguém passara à sua frente no preciso momento em que o indivíduo abrira o cacifo?
O que nesse instante interessava era o facto de que o indivíduo já fizera o que tinha a fazer dentro do pequeno compartimento. Fechara-o e avançava para a saída da estação, sem se dirigir à plataforma de onde partiria o comboio, o que causou ainda mais suspeita em Alexander.
Toda a atenção que depositara no homem desconhecido tivera um único resultado: o comboio acabara de partir e Alexander nem se apercebera. Soltou um palavrão que fez os poucos transeuntes lançarem-lhe um olhar reprovador e olhou para o horário de partida e chegada de comboios. O próximo seria só dali a trinta minutos… bem, pelo menos teria tempo suficiente para examinar melhor "O Cacifo".
Levantou-se do banco e, o mais despercebidamente possível, aproximou-se do suspeito. Passou várias vezes à sua frente, olhando-o de soslaio como se fosse um perigoso criminoso, e, por fim, parou, ficando de frente para a porta, direito como um soldado em sentido. O que estaria lá dentro? Uma bomba? Sim, poderia ser… o homem tinha todo o ar de terrorista… ou então diamantes roubados!
A curiosidade estava a consumi-lo interiormente... tinha que saber o estava lá contido! E tinha exactamente vinte minutos antes do próximo comboio.Tirou o porta-chaves com forma de bota do bolso. Escolheu a chave mais pequena, a da sua própria caixa de correio, e colocou-a na pequena fenda do cadeado. Coube! Tentou rodar levemente, não se moveu um único milímetro; agora com um pouco mais de força… o cadeado não cedeu… Aquilo irritou-o. Tentou com mais força e a frágil chave dobrou! Retirou-a do cadeado, e furioso com o que tinha acontecido, deu um murro no cacifo. Arrependeu-se logo de seguida e encolhendo-se com o barulho provocado. Com sorte ninguém reparara.
O que poderia fazer mais para que o cacifo abrisse? Havia quem usasse ganchos dos cabelos, mas ele não usava ganchos; poderia arrombá-lo, mas possivelmente prende-lo-iam. Olhou o cadeado intensamente, esperando algum milagre, que tivesse algum poder fantástico que o ajudasse a abrir o armário. Ficou parado durante quinze minutos, tentando encontrar no seu interior algo que abrisse o cacifo, a força da sua mente talvez, mas nada. Bem, mais valeria desistir, aquela ideia não passava de uma estupidez mesmo. Imensas pessoas com aquelas características andariam por aí e teriam um cacifo numa estação de comboio. Tinha sido um passatempo interessante tentar abrir um cacifo alheio.
- Ganhaste, pá! – disse Alexander para o pequeno armário. Estaria a ficar maluco?
Voltou-se em direcção à plataforma, estendendo a perna para dar um passo em frente. Com este movimento soou um “clique” que o fez arrepiar-se completamente, fechando as pálpebras com força, como se ele próprio tivesse feito aquele ruído. Rodou a cabeça para trás e examinou o cadeado… estava inescapavelmente aberto! Apressadamente levou a mão ao objecto da sua atenção, mas parou a escassos milímetros dele. Uma vozinha dizia-lhe que não deveria fazer aquilo, não era da sua conta! Contudo, como se teria aberto?Bem, também era só abrir e fechar, nada que causasse alguma hecatombe.
Inspirou e prendeu a respiração, ganhando coragem para abrir a porta de ferro. Abriu uma pequena fresta e espreitou. Não pareceu ver nada de mais, então abriu-o completamente. Os seus olhos dilataram-se de espanto com o que se encontrava dentro do cacifo: um pequeno envelope com algo escrito a tinta dourada, numa letra extremamente floreada. Era um nome, Alexander Robinson, o seu nome!
Pegou no envelope sem pensar e abriu-o, retirando um pequena folha escrita à mão na mesma letra floreada e no mesmo tom de tinta. Era pequeno o texto, mas sincero e tocante:
Que deliciosa admiração é essa? Não sacio essa tua curiosidade tão louvável nestes tempos distantes? Bem, se assim é, digo-te que é uma óptima notícia! E, pelo que vejo, não fui nenhuma decepção; ainda melhor!
Que seja eterna essa tua curiosidade, por que será ela que te levará além na vida e nos sonhos que lhe dão existência. Sê tu, sê alegre e vive! Vive no encanto dos novos mundos por explorar, na magia de um dia que chega finalmente, no nascer do Sol que te alumia! Voa, canta, escreve, deixa-te fluir, pois és a essência do Universo.
Nunca te esqueças desta mensagem, considera-a um conselho de amigo.
Assinado:
Senhor Desconhecido
Alexander ergueu os olhos da carta e sorriu, enquanto começava a ouvir o seu comboio a aproximar-se. Não um sorriso vulgar dos que se dão às pessoas que nos incomodam e que não possuímos coragem para repelir, mas um sorriso da mais pura felicidade, o sorriso de uma criança que acaba de receber a sua prenda favorita.
Voltou a colocar a carta dentro do envelope e olhou para o cacifo frio. Algo lhe dizia que não deveria levar a carta consigo, que deveria deixá-la ali, talvez para alguém a encontrar, ou… para um dia voltar a ver o estranho indivíduo e novamente tentar abrir um cacifo alheio, para satisfazer a sua insensatez, a sua curiosidade.
Resolveu-se. Veneradamente colocou a carta dentro do cacifo, com as letras a dourado voltadas para cima. Fechou-o com todo o cuidado e correu! Correu para não voltar a perder o comboio acabado de chegar. Entrou já as portas começavam a fechar-se lentamente e, depois de um suspiro prolongado de alívio, lançou um último olhar ao cacifo que agora parecia tão distante, mas que, no seu coração, pulsava com o brilho dourado das letras floreadas da carta com a sua mensagem tão simples… Voa, canta, escreve, deixa-te fluir, pois és a essência do Universo.
6 comentários:
Ai está o que eu dizia! Genial, que venham mais assim.
Obrigada pelo elogio =D
Mas quem és?
Sou o David Rodrigues ;)
este texto é espectacular! a retratar a essência do amor através de metáforas e da personificação.
A Lua sempre foi romântica e sonhar nunca fez mal, dizem.
Hm, o Alexandre que eu conheço até podia usar ganchinhos...
Gostei da mistura entre o quotidiano e o misterioso, sempre com um vocabulário envolvente.
O Alexandre que conheces podia usar ganchinhos? Estás a pensar no mesmo Alexandre que eu? É que se estiveres, sou capaz de concordar hihihi
Mas ainda bem que gostaste ^^
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