quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Versos Soltos...


Ponto por ponto, pesponto
Pura ponte pela qual passarei.
Que para passar além
Do prado por onde passeei
Pintei de pontos a ponte,
Pela qual passei.

*

Mor era a vida cantada
Ontem, que a cantei alto.
Rugi como quem espanta
Gorda a morte que se empanturra!
Ora, cantei tão alto que enrouqueci,
Minha voz esvaiu-se,
Irrisória deste cantar onde prometi
Rir e cantar até que a voz se escoe.

E, por fim, morri.

sábado, 19 de dezembro de 2009

O Canto da Sereia

O suave canto do rouxinol
É somente um esgar retorcido
A par do tom que exaltas.
Exímia a melodia que é contigo,
Tua vida e teu querer,
Teu poder de ser,
Tua mania, tua vontade.
Sinfonia leda que me embala
E resguarda das teias da verdade.
Que adormeço no teu cantar,
Adormeço e avanço tão cego,
Que me cegas da alma o pensar.

(Pertencente ao capítulo IX do Prín.)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Era uma vez um Sonho


Her Strange Pilgrim, by Forlorn Existence

De quando em vez era passado,
Lembrança esguia de alma pura.
Era o passado daquela vez,
Em que foi ela donzela e candura,
Inocência de insensatez
Insana, se desmedida a ternura.

E era uma vez naquele jardim…
Era? Se era não sei,
Mas que foi um dia, em mim,
Que a vi, donzela e graça também.
Ai de mim, espadachim,
Que naquele jardim sonhei.

Que era bela a donzela,
E donde a espreitei fugi, correndo.
Bela, que era senhora,
A daquele jardim que não entendo.
Ai de mim, que era a hora,
Que na demora se esvai o vento.

E corri, corri… ai de mim,
Que acordei ao seu alcance,
Naquele seu jardim de jasmim
De tempos idos, meu romance.
Acordei, que não era eu o fim,
Mas o que fui em vida, seu nuance.

Que era uma vez um sonho,
Que outra vez sonhei.
Sonho meu, só meu.
Sonho de mim, sonho dela que sonhei.
»Minha donzela, sou teu Romeu,
Rumo ao sonho que eternizei.

sábado, 28 de novembro de 2009

Acróstico (III)


Dream, by guggenheimgrotto

Ah! Nada sei.
Nada de quanto havia
A saber na Sabedoria.

Cantado o absorto do surreal,
A momentos de tempo infinito,
Tomei pedaços pintados em cor de sonho,
Aquando este meu passear de risonho
Riso se vivo o não saber
Inato ao não sabido do conhecer, que
Nunca soube o que havia
A saber, um dia.

Argonauta fui, nesse mar de desconhecido,
Lado a lado com o prazer de antever
Brumas, as da magia,
Ubíquas de dia e noite de breu,
Quando em seu vulto se obscurecia,
Ululante o vagar do surreal nascer.
Enquanto era crepúsculo que o dia e a noite são,
Rumei sabendo o não saber
Que era bússola só o coração
Um guia cego mas que via
E esperei o que não sabia.

E enquanto esperava
Urdir o não saber no que não sabia,
Soube que sob intenções disformes
É o conhecimento vivido e navegado.
Barco à vela nas intempéries
Imaginadas, que são brisa e vento
Olvidado nas marés do pensamento.

Dedicado à minha querida
amiga Catarina

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Vazio


Fog, by Flugcojt

Dor?
Não a sinto,
Que sou um pedaço de vazio
Resgatado à corrente vaga do nada.

Puro e impuro. Depuro
Todos os termos que são nada
E eu um tudo,
Vago o conceito de ser um ser,
Se é certeza o não ser incerto.
Incompleto o doer de ser,
E por isso não serei,
Meu amor vazio,
Que não te sinto.

E o que te leva a sentir?
Pergunto, discreta, em murmúrio fosco,
Que o não ouvir canta em sinfonia leda
E o escutar é martírio à alma.

Por isso não respondas,
Que não te ouvirei.
O vazio é surdo.

Não te entreponhas entre mim
E a díspar cor que não vês.
Que o vazio é cego.

E não me oiças.
O vazio não é mudo,
Mas não sente o que diz.

E o que não é vazio é defunto,
Meu defunto amor, que sou vazio,
Aquele que vagueia em tudo
Na esperança de te sentir.

domingo, 22 de novembro de 2009

Caminho entre o Mar

Desmontou do cavalo e colocou-se lado a lado com Landar. Atirou a capa para trás das costas, de forma a não lhe estorvar os movimentos. Enquanto isso, Liriana colocou Karai no chão, antes de ela própria abandonar a sela de Sirin. Não ousou perguntar o que iria fazer a irmã. Talvez invocar uma embarcação caída dos céus.
- Ai, tenho de ver este espectáculo – comentou Leonardo, posicionando-se ao lado de Alexis, de braços cruzados. – Vocês as duas venham também. A última vez que alguém viu isto foi há já alguns milénios atrás.
O que poderia animar o necromante assim tanto, levando-o ao termo de usar exageros que incluíam vastas porções de tempo? Aproximou-se, levando Karai pela mão e esperou para ver o que aconteceria.
Alexis arregaçou as mangas da camisa até aos cotovelos, mostrando o quão pálida era a sua pele. Esticou os braços à sua frente, e anuiu-os pelas palmas das mãos, em direcção a Este. Após assumir aquela posição, as palavras brotaram-lhe dos lábios, num tom alto de invocação que os rodeou e se espalhou pelas profundas águas em redor.
- Deminir ê phoroin vir danark, ye falanar theluin se ulidarn. Lessir ê Thornigan vir certhon, gladh, milno kandell, dyrin ye sar. Voloner aferi ceri vir kirdanl sem argani, jian iemorion se uthillavar vuanor. Lessir damar fyoni, milne halnaners ceri lnimars iemorsa bredins holunner.(*)
Para Norte e Sul, as ondas embateram de encontro aos rochedos com mais força, espumando de forma quase agressiva, enquanto tentavam trepar por eles acima. Na praia, as gaivotas levantaram voo súbita e simultaneamente, deixando algumas penas para trás, ao verem que as ondas se aproximavam das suas patas de forma anómala, como se a maré mudasse inesperadamente. A superfície do mar tornou-se mais turbulenta, como se os movimentos na massa de água modificassem as correntes radicalmente.
Sentiu um puxão na mão quando Karai se aproximou mais da beira do monte, espreitando curiosa para o fundo. Os sedosos cabelos brancos pendiam soltos da trança em finas madeixas que pareciam puxá-la para baixo, através da gravidade. No local onde a criança focava a sua atenção, um sulco em linha recta começou a aprofundar-se sobre as águas que rugiam em fúria não reprimida, separando as partículas quase infinitas em duas partes distintas. E entre essas duas porções de água, abriu-se um trilho forrado a areia molhada e flanqueado por dois muros de água que iam crescendo em altura, à medida que o caminho descia, até às profundezas do Mar do Interior.
Alexis baixou os braços, observando o seu feito num tom crítico. O caminho que atravessava as descobertas entranhas das águas deveria ter no máximo três metros de largura. Mas quantos não seriam os de comprimento, ao longo de todo ele, assim como os de altura? Iria ser uma viagem claustrofobicamente inesquecível.
- Acabaram de conhecer a encarnação de Moisés! – Disse Leonardo, com um sorriso de orelha a orelha.
Apesar do tom divertido da afirmação, não deixou de concordar de todo com o significado inato. Nada poderia descrever o poder contido no feitiço que Alexis proferira. Se ouvira falar dele, fora muito remotamente, quando lera o livro dos Deuses. Não atentara em muitos dos feitiços por lhe parecerem pouco práticos ou mesmo inúteis. Deveria ter catalogado este com o mesmo título. Mas eis que revelava a sua utilidade, uma utilidade que ultrapassara a sua imaginação.

(*)Adentro o profundo se encobre, em vagas negras de escuridão. Quando o Sol se extinguiu, cresceu por consumir, fechado em si. Mas eis que se abre à luz, trilho este de passado oculto. Quando perdido encontrado, pelas palavras que invocam esse caminho encerrado.

(excerto do Prín.)

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Suserana da Noite


Dancers in the Dusk, by Puimun

No entardecer que o céu ilustra
A laranja e carmesim,
Diviso um final firme no horizonte
Onde se encerra o mistério pardo.

Que quando for rei o crepúsculo
No seu mísero reino de tempo nenhum,
Abrirá os sete cadeados fechados
E libertará o escondido no além.

Além, muito para além, aguarda a noite.
Trajada em veludo de escuridão,
Marchetada de jóias em ouro e prata.
Que se erguerá a suserana.

Liberta por fim e viva, que é bela,
A donzela do luar formoso,
É fogo ebúrneo que se acende,
Para os amantes do profundo,

Que a sua cantiga é solidão,
Mas alegre solidão de melancolia.
Um sonho áureo de tempos antigos,
Que foi ontem real, ontem, tão distante.

Hoje é lenda e amanhã será mito,
O da senhora suserana de além um dia.

Para a Fifi ^^

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Boneca de Trapos

Silêncio. Um ténue raio de sol penetrava através das fendas estreitas da madeira apodrecida de velha, alumiando o pó que flutuava etereamente em seu redor, uma chuva que revolteava ao mero sopro e não molhava ou era fria. Esticou o pequeno braço branco, fechando a mão sobre o pó. Aqueles fragmentos ínfimos faziam parte de si, crepúsculos de um inato que se desfazia e se escapava através do tecido que era a pele fina, compondo a atmosfera abafada que se revolvia, no lar de solidão que habitava.

Antes, não dava especial atenção àquelas partículas. Só pensava nos sorrisos de alegria que revibravam vivos naquela mesma casa, sorrisos que ela própria fazia sorrir, alimentando-se de carinho e amor, tal como era ela alimentada. Mas agora ninguém a alimentava. Há quantos anos passaria fome? Esquecera-se do passar do tempo naquela cabana apodrecida do topo da árvore. À sua frente, repousava uma chávena de chá inundada em água turva. Conseguia ver o seu reflexo no líquido que nunca evaporara e ali permanecera, o chá que partilhara com a sua senhora menina que um dia partira. E ali a deixara viver de sede, sede de querer ser abraçada novamente, sequiosa daquele toque suave, do pente nos seus cabelos de tiras castanhas, agora também poeirentas, ruídas pelas traças incessantes, tão esfomeadas quanto ela. Ao contrário da sua pequenez pessoa que nunca fora, os insectos tinham o que comer. Comiam-na a ela e à sua mansão. Comiam o que era seu. Talvez também tivessem comido a sua senhora menina, aquelas térmitas desditas.

Deixou pender o braço que erguera para apanhar o pó que era seu, e a casa caiu, tal como a vontade de viver da pequena boneca de trapos.

(Não saiu nada do que eu queria -.-')

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Ditador



Crown Without a King, by Rawimage

Misericórdia? É um conceito inglório
De cruel ventura ditada aos fracos.
Não possuo eu o que me é vão.
Que da complacência ganho um marco
De rocha erodida, a abater,
Promontório cadente. Mas não cairei,
Dito a Vontade e sou a Lei,
Legado do frígido fogo do poder
Que constrange e silencia,
Que incendeia e queima em cinza
A alma viva que é a morte que almejo
À sua vontade caída.

(Capítulo VIII - O Príncipe Akuirien, do Prín)

domingo, 25 de outubro de 2009

Decaimento


Decay, by Sephiroths Heart

Decresço.
Do ínfimo ponto a que chamam alma
Sobram réstias de véus rasgados,
Antros molestados por térmitas
Da carne.

Floresço.
Que com pétalas murchas
Movo mundos mortos em dor,
Donde os gritos são cantos de musas
E Parcas.

Vivo.
Sabe a vida o que é viver
De crânio em mãos se a questão
Por saber é ser ou não ser,
Que não sou.

E morro.
Se não é a imortalidade que oiço,
Insanidade de mente caída
Esta que mendiga migalhas
Ao coração.

sábado, 24 de outubro de 2009

Agradecimento


Com este post quero agradecer ao Afonso pela honra de me ter premiado com este selo.
O seu blog é um local tocado por uma enorme sensibilidade, que muitas vezes não consigo incutir aos meus poemas. Os meus parabéns ao seu trabalho e aos seus sentimentos.

Beijinhos!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Deus das Alturas


God of Thunder, by Suirebit

Do Nunca era aquele que se perdeu
Lá em manhãs de gelo áureo.
Acerbo de paladar corpóreo,
No tinir álgido de pedra dura.
Sendo ele o que ficou tisnado
De fogo em frio, assim queimado,
Lá no Nunca das Alturas.

Que quem o via bem dizia
“Ai de nós, que se nos dissolve o pranto,
Do peito caído, de coração aberto”,
Conquanto se queda desta altura,
E demorada a queda é vontade
O voar plúmbeo da verdade
Viva se vã que das alturas o esconjura.

Mas ele não cai, é perene ao frio
E do vento irmão de comunhão sagrada.
É sabido assim deus do que foi,
Do Nunca que um dia marchou
Nas alturas do devaneio em vida,
Real ventura a que foi um dia
E que ao largo em si ancorou.

Então, aqui fica a lenda,
Dos que ascenderam e tombaram.
Fica, mas não se esvai,
Que o almejar é perpétuo querer
O de um dia esse deus despertar,
E ao seu povo dormente retornar,
Das alturas a que se elevou ao morrer.

Dedicado a'O Bar do Ossian

sábado, 10 de outubro de 2009

Coração do Mar

Escuta o marulhar fresco
Que te chama em tom de água.
Que é gélido o seu apelo,
De negro o soar contido.
É voz trémula de mágoa,
Esse grito rouco em gorgolejo...
Que és só tu e tu o seu desejo,
Esvanecido na lassidão.
De profundo em profundo,
Mais que profunda imensidão,
A daquele abismo íngreme
Para os confins do coração.

(Prín - Capítulo VII - O Mar do Interior)

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Corpo e Alma


Body and Soul, by -Sylph-

De quanta da alma rubra
Sabe o Ser nos dizer,
Se expectante se destila nula,
Vazio imberbe do saber?

Pois não sabe a conta
De em quantos fragmentos pintou
O limite do ser, a afronta
Do não saber, que se quedou,

A marca corpórea do espírito,
O ponto aberto à alma.
Cerrou-se ao corpo o desdito
Invólucro interior que o embala.

Então, acordou o dormente,
Orbes vítreos de não ver,
Pintados em cor de demente,
Rubra a mancha do ser.

Que era em sangue o traje vestido
E o trilho suave demarcado.
Este morto, aparente no vivo
Carnal, do corpo pecado.

E estirada a vida sem Ser,
De espírito morto liberto,
Ledo sabe o sossego de ver
Esse limbo de mundo incerto.

Aquele onde, por fim, floresceu,
De pétalas assim marchetadas
Em miríades de espírito meu,
As sapientes almas danadas.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Almas do Engano


Lightning Spirits, by hibbary

Se andas a coberto do que pensas ver,
Desengana o resto que te diz que sim,
Que o dizer da mentira não se diz,
Só se concorda pela alma fraca,
Enredo obtuso de falhas caídas,
Com que recorto, rindo,
O clamor perdido
Das ditas almas.

As minhas almas.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Predador


Não existe brava resposta
Ao que de invisível se chama
Morte e causa de morrer.
Não existe, quando caças
Disfarçado de cantiga e rosa.
De poema e alento, tão disfarçado,
Passo ante passo.
Que contas, perecidos aqueles d’outrora,
Fogosas mentes e almas sãs.
Contas e cantas pelas vielas,
Faces tão disformes de belas,
Que todas elas és.

(Poema pertencente ao VI capítulo do Prín.)

sábado, 5 de setembro de 2009

Loucura


Unfurling 2, by Puimun

O silêncio clama teu nome
Sob a brisa da alva.
Um grito mudo de moribundo
Que ecoa lasso. Oh! Tão fraco,
À tua esguia alma.

Ignora-lo. Nada te é
O murmúrio que abranda
O nome do desvario.
Que te sabes ponto mais alto,
O da loucura infanta,

Sabes-te do mundo deusa,
Bela de santa vitória.
Aquela que mata quem não sabe,
Aquela que matou por saber,
O sabor férreo da glória.

Pois, da gente insana,
Sois dama, rainha e suserana.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

A Muralha



Nos altos vagos da maresia,
Cantastes teu canto.
Mar a dentro, mar de pranto,
Lágrimas escorridas ao largo,
Bater constante de fulgor pardo,
Em rochedos de consciência fria.

É essa Muralha que se ergue além,
Infinita de fim.
Essa Muralha que te prende a mim,
Laços constritos de lendas,
Fogos-fátuos em que atentas,
Vazio o teu canto de ninguém.

Que não tombam as torres,
Não afogas ameias.
Não afrontas mitos nem teias
De sonhos, estrelas caídas da lembrança.
Não destronas, não amansas,
Dita a dinastia dos defensores.

Que o canto teu não alcança
Escutares dos céus.
No alto da Muralha são os meus
Falares que ditam, Sereia.
Que o teu canto só enleia
Os abandonos da esperança.

No entanto, nada és sem mim,
Ó doce donzela.
Nada és sem a chama da vela
Que encandeia os cegos defuntos
E os atira da muralha para teus profundos
Cantos insanos sem confim.

sábado, 29 de agosto de 2009

Os Passos do Destino

Ora, ora ora... como sou uma pessoa muita chata e dada a publicidades (ou não), aqui deixo a minha propaganda. Os Passos do Destino é um livro electrónico feito em conjunto por mim e pela Carla Ribeiro. Aqui fica a sua apresentação não formal, assim como o link de download do mesmo! Boas leituras ^^


Sinopse

Quando se conta uma história, abrem-se ao leitor as portas de um novo mundo. Mas onde está a razão das histórias se não há ninguém para as conhecer? É este o objectivo deste conjunto de quatro contos situados no género do fantástico. Dar a conhecer os mundos e a imaginação das autoras que os criaram e mostrar as imagens e os sentidos que neles se escondem. São espadas e anjos, piratas e profetas, unidos e fragmentados na diversidade dos seus próprios mundos. E, no essencial, uma unidade constante: a da vontade de contar e de partilhar o imaginário.

O autor

Carina Raquel da Costa Portugal Monteiro nasceu a 19 de Junho de 1989, no distrito de Lisboa. Mora actualmente na Amadora e estuda Biologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Escreve prosa e poesia por gosto e amor às letras e participou já em alguns projectos, entre os quais a revista literária Alterwords. Alguns dos textos, principalmente de poesia, podem ser consultados no blog da autora: http://asameiasdocrepusculo.blogspot.com

Carla Ribeiro, estudante de Medicina Veterinária, natural de S. Martinho de Mouros, nasceu a 20 de Julho de 1986. Premiada em vários concursos literários, tem textos publicados em diversas antologias e colabora assiduamente em diversas publicações electrónicas. Publicou, além disso, os livros “Estrela sem Norte”, “Alma de Fogo”, “Canto de Eternidade”, “Herdeiros de Arasen, vol. I”, “Herdeiros de Arasen, vol. II” , “O Deus Maldito”, “Alma Abandonada”, “Dualidades” (este em co-autoria com Susana Catalão) e “E Morreram Felizes para Sempre”, bem como os e-books “Derivações de Além-Vida”, “Coração Selvagem” e “Fragmentos de Sombra” (este último também na Neolivros). Informação sobre as publicações e excertos das mesmas podem ser encontrados em www.freewebs.com/carlaribeiro

Download

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A Criança


Child, by Ohnurre

A beleza efémera do suspiro
Baila subtil na pequena face;
Dança doce, de sorriso em sorriso,
E nasce viva, de estrelas e luar,
De mel melódico e risos cantados,
À singela criança do fado.
Que é vida de olhar inocente,
E símbolo sagrado. Se amado,
É amor de coração aberto
E mão estendida, para ti,
Na sua vida de brincar,
Que só ela te sorri.


V capítulo do Prín xD

Poemas soltos, rio abaixo...


Liriana, by Catarina (para mim! hehehe)

Foi fadiga a que deu ênfase
Aos olhos que te espreitam no rio.
Fadiga de ver passar, de Sol-posto a luar,
A candura caída, mor de sede à despedida,
Que a mim vem cansar.

Então adormeço. Adentro a noite
Encanta, o doce rio correndo cantando.
O teu canto, se pranto fugido do rio,
Rumor de mito e de natura o rito,
Do meu embalo tardio.

Para a Catarina ^^

*

Na fonte florescem estrelas mil,
De água, diamante e gelo vivo.
Flores campestres de azul anil
E arco-íris eterno de fogo índigo.
Nascente ao norte, primaveril,
Flui rio doce, de sereno antigo.

(Tenho andado tão inspirada quanto um ponto de vazio circunscrito no nada)

terça-feira, 28 de julho de 2009

Pluma Escarlate

Parte III

Uma luz difusa entrava-lhe pelas pálpebras fechadas, acordando-a de forma lenta e suave. Todavia parecia que alguém lhe tentava arrancar o coração ao mesmo tempo que isto acontecia. Obrigou-se a abrir os olhos, pronta a desembainhar a espada e esquartejar o estupor que lhe causava a dor.
Ao fazê-lo, a luz laranja de um candeeiro ofuscou-a momentaneamente, mas o que vira nesse relance de segundo não lhe agradara. Quando se habituou à luz, confirmou as suas suspeitas pouco felizes. Estava deitada num camarote pequeno, aconchegada numa cama confortável. Sentado ao seu lado, um homem de meia-idade observava-a atentamente, como se esperasse que ela desse um salto e fugisse.
No momento em que os seus olhos se cruzaram, ele levantou-se da cadeira e dirigiu-se para a porta do camarote. Saiu e fechou-a à chave sem uma palavra.
Alexandra desviou o cobertor que a aquecia e tentou levantar-se, mas uma dor invadiu-a como um relâmpago, cortando-lhe a respiração. Deixou-se cair para trás, mordendo os lábios para abafar qualquer género de lamento. Começava a lembrar-se do que acontecera. O denso nevoeiro, o combate com o capitão Henrique e a flecha…
Olhou para si e para o seu estado lastimoso de vulnerabilidade. Alguém a tinha despido e colocado ligaduras em redor do tronco. Sentiu a sua face ganhar um tom rubro de vergonha e fúria.
Uma chave voltou a rodar na fechadura. Os seus sagazes olhos azuis fitaram a porta, enquanto ela se abria sem pressas. Um olhar simpático fitou-a daquele local. Era o capitão Henrique.
- Posso?
- Não sou eu a comandante do navio, não é a mim que tem de pedir se pode ou não – rosnou Alexandra, desviando o olhar para o tecto.
- Aceito isso como um sim, capitã Vasconcelos – declarou com um encolher de ombros, fechando a porta e avançando até à cadeira onde antes estivera o outro homem acomodado.
Durante alguns segundos impôs-se o silêncio. Alexandra não se dignava a falar-lhe e Henrique simplesmente esperava que ela o fizesse. Pairava o impasse no camarote. No entanto, numa questão de impulsividade, ele quebrou-se.
- O que vão fazer comigo? – A sua pergunta era autoritária, não queria dar parte de fraca. Continuou a olhar para as madeiras bem tratadas do navio, irresolutamente.
- Isso depende do que me contar.
- Sua escória mesquinha… está à espera que eu traia a minha tripulação, não é?! Prefiro morrer a vê-la nas suas mãos asquerosas…
- Imagino que prefira – interrompeu o capitão, pacientemente. – Mas não é isso que quero ouvir.
Alexandra mirou-o de soslaio. A desconfiança marcava-lhe pequenas rugas na testa. Se não era aquilo que o homem queria saber, então o que seria? Não via mais nenhum motivo de conversa entre eles.
- Gostava que me esclarecesse do porquê destes ataques. Há dois dias atrás fez graves acusações ao Marquês de Tomar, acusações essas em que não vejo fundamentos.
Os olhos castanhos do capitão fitaram os seus de forma inquiridora.
- A que ataques se refere? – Perguntou a capitã do Flecha Dourada, tomando uma atitude de plena ignorância, desviando o olhar.
- Aos que o seu navio perpetua às embarcações portuguesas.
- Não sei o que quer dizer com isso. Penso já ter referido o facto de não ter sido o meu navio a fazê-lo. Foram os seus amigos! – Uma dor perpassou-lhe o peito ao elevar a voz, o que a fez tentar acalmar-se e mentalizar-se de que não valeria de nada começar aos gritos. Só pioraria a situação em todos os sentidos. Tinha que se comportar. Talvez assim conseguisse congeminar uma forma de escapar.
- Eu não confraternizo com piratas…
- Mas o Marquês confraterniza! Com piratas e espanhóis que estão mortinhos para devorar Portugal – rosnou, com um esgar de raiva. – Não espero obviamente que acredite na minha palavra, mas é esta e mais nenhuma. Agora pare de me importunar com perguntas inutilmente hipócritas.
- Tem provas do que está a afirmar?
- Não acha que se tivesse provas não as teria levado de imediato a El-Rei?! Pouparia tempo, dinheiro e tripulação! – Quase gritou, com os olhos a coriscarem. – Agora, por favor, saia. Não me sinto com disposição para isto.
- Não, ainda não vou sair. Quero conversar consigo sobre o porquê de estar deitada nessa cama.
- Talvez porque fui capturada? – Ironizou com um revirar de olhos.
- Também. Então falemos do porquê de ter sido capturada, do porquê dessa flecha lhe ter acertado exactamente em si quando a minha nau estava a transbordar de guardas – declarou com um sorriso, cruzando as pernas.
- Não está a insinuar que alguém da minha tripulação me tentou matar, pois não?
- Talvez até esteja – insistiu sobre a indignação de Alexandra. Levantou-se e disse as suas últimas palavras: – Pense nisso, capitã. Dar-lhe-ei o tempo que precisar.
- Desapareça! – Gritou a jovem mulher, erguendo o tronco como se fosse saltar da cama para o espancar. Aquelas maneiras arrogantes enjoavam-na e aquelas insinuações eram descomunais.
- Como queira, mademoiselle – disse, com uma semi-vénia. – Mas pense bem. E por favor, tenha consideração pelo trabalho que o doutor teve. Não queremos que a ferida abra.
- Para me poderem enforcar ainda viva?
- Sinceramente preferia que isso não acontecesse – murmurou, voltando-lhe as costas. E, como pedido, desapareceu porta fora.
Alexandra deitou-se para trás com dificuldade e, por fim, respirou fundo. O que pensava aquele idiota que estava a fazer? Tentar virar a capitã contra a tripulação era um truque infame e muito sujo. Fechou os olhos. Estava demasiado cansada.
Três sóis nasceram depois desta pequena conversa entre capitães. Em nenhum dos dias fora permitida a saída de Alexandra do camarote. Foram-lhe disponibilizadas as suas antigas vestes, lavadas e com algumas costuras. O médico fora visitá-la algumas vezes mas a capitã recusara-se ameaçadoramente a ser vista.
- Parece uma criança – reprovara Henrique, num desses martirizantes dias, o que lhe valera um olhar assassino.
O crepúsculo chegara e Alexandra escutou o capitão entrar com um pequeno tabuleiro de comida no camarote. Era o único que a ia visitar, para além do médico, e só ele tentava com afinco falar consigo.
- Quando é que estão com intenção de me envenenar? – Perguntou sarcasticamente, sem o olhar. Estava sentada junto aos vidros da janela, observando o mar que se deixava navegar por aquela nau amaldiçoada.
Assim, não viu o revirar de olhos de Henrique, só ouviu o seu suspirar impaciente.
- Ninguém a quer envenenar.
- Ah pois é, querem-me enforcar. Agradeço a sua gentileza em me relembrar.
Estava mais calma agora. Já se habituara à ideia de que o cadafalso esperava por si. Por mais que navegasse, nunca fora uma verdadeira pirata, não crescia em si a necessidade de fuga, só a de justiça. E faria todos os possíveis para dar um fim a tudo aquilo, antes de morrer.
- Se é assim que pensa…
Levou o tabuleiro até a uma pequeníssima mesa-de-cabeceira e pousou-o. Nele repousava um rústico copo d’água, uma sopa de bom aspecto e um bocado de pão com carne seca. Era mais que muitos dos marinheiros do navio comiam, mas Alexandra não agradecia. Não queria que a tratassem bem. Não era uma convidada, era uma prisioneira.
- Diga-me mais uma vez – pediu o capitão – o porquê dos seus actos.
- Estou a defender a minha pátria, a fazer justiça pelo meu pai – continuou a olhar o mar aquando o seu murmúrio quase inaudível.
O capitão Henrique nada disse e o silêncio que se instalara entre a sua resposta e o homem fê-la olhar em volta. O camarote estava espantosamente vazio.
Aproximou-se do tabuleiro e pegou no copo d’água. Não chegou a levá-lo aos lábios porque um pequeno objecto amarelado lhe chamou a atenção. Era um pedaço de pergaminho velho que tinha permanecido sossegadamente escondido debaixo do copo. Segurou-o entre os dedos, de sobrancelhas franzidas.
***
Henrique dirigiu-se com passos lentos e pensativos para a proa. Encostou-se à amurada e observou nostalgicamente o clarão alaranjado, mas difuso, que marcava o limiar entre o pôr-do-sol e a noite.
Perguntava-se se os seus actos eram os correctos, ou se estaria a cavar a sua própria sepultura mesmo rente aos pés.
As palavras de Alexandra não lhe soavam a mentiras rebuscadas, muito pelo contrário. Mas não havia forma de se provar a verdade. Ela era considerada pirata, nunca seria ouvida, e mesmo que não fosse, era uma mulher, a quem raramente davam crédito. Ajudá-la poderia significar a forca para si também. No entanto, a sua consciência deixá-lo-ia sossegado noite após noite, depois de a ver enforcada, sem mesmo ter a verdade nas suas mãos? A certeza da sua culpa? A resposta era simples... simplesmente não deixaria.
Levou a mão ao bolso e tirou de lá uma pequena pena cortada rente à penugem. Era vermelha como o sangue que lhe corria nas veias, como a vida que se derramava na lâmina da sua espada sempre que combatia, como um espírito que se esvai quando a sua honra não é reposta.
A escuridão tinha tomado já conta do convés e uns brilhos espelhavam-se já pelo céu nocturno, quando o capitão Henrique deu a sua decisão por totalmente tomada. Não desonraria a sua pátria com actos incalculados, as leis da sua alma manter-se-iam. E o que elas lhe diziam era claro. Todos têm o direito de provar o seu direito à liberdade.
Dirigiu-se ao seu camarote onde deixou que a noite se alongasse. As horas passavam lentas sob a vaga ondulação, mas nelas sorria a esperança.
Por fim, quando lhe pareceu ser o momento exacto, levantou-se e saiu, determinado a fazer o que tinha de ser feito. Com passos calculados de cuidadosos que eram, aproximou-se do marinheiro adormecido que supostamente guardava as armas da Pluma Escarlate: uma mortal espada criada pelos melhores forjadores franceses, e uma pequena adaga de lâmina um pouco curvilínea, com inscrições em Italiano.
O soldado descansava com a cabeça descaída sobre o ombro e a boca semi-aberta num ressonar ronronante. A espada e a adaga estavam abandonadas ao seu lado.
«Isto é que é cumprir ordens…», pensou o capitão, ironicamente, com um revirar de olhos, mas fora bom que assim acontecesse.
Baixou-se lentamente para apanhar as armas. Os seus joelhos estalaram inconvenientemente, fazendo-o conter a respiração. Mas fora uma preocupação vã. O homem não acordaria mesmo que uma trompa bárbara fosse entoada junto dos seus ouvidos.
Resgatou as armas rapidamente e afastou-se em direcção ao camarote da capitã Vasconcelos. Rodou a maçaneta devagar para que não chiasse ruidosamente e abriu-o. O escuro tomava conta do compartimento.
- Capitã? – Sussurrou para o seu interior. Nada conseguia discernir no negrume. – Alexandra?
- Penso não lhe ter dado autorização para me tratar pelo nome próprio, capitão Henrique. – A sua voz era bastante calma o que amenizava a situação. Vinha do seu lado direito.
Perscrutou a escuridão com mais atenção. Junto a si estava uma silhueta esguia, talvez elegante, numa perfeita camuflagem que era as suas vestes. Os seus olhos brilhavam densos num enigma intransponível.
- Peço-lhe as minhas mais sinceras desculpas. Fi-lo inconscientemente – murmurou o jovem capitão desviando o olhar.
- Não peça o que não lamenta, capitão – declarou Alexandra com um sorriso. – Gostava de conversar consigo sobre tudo isto, mas dir-me-á que não temos tempo. Estou correcta?
- Sim, está. Tome, tenho aqui as suas armas e preparei um bote dos mais pequenos para partir.
- Como vai explicar o meu desaparecimento e do barco? – A desconfiança dava agora lugar à incredulidade. – O que lhe vai acontecer?
- Preocupe-se consigo, capitã. Tenho todos os passos planeados. Ordenei para que um dos prisioneiros fosse deixado à deriva no mar. O bote foi preparado para isso, supostamente.
- Prisioneiros?
- Ninguém do Flecha Dourada, descanse – garantiu.
Deu passagem a Alexandra enquanto esta colocava a espada e a adaga no cinto. A Lua brilhava redonda no seu oceano negro, iluminando-os vagamente. Observou-a pelo canto dos olhos. Uma mulher tão bonita e tão séria, com aquele destino nas mãos. Os anjos eram cruéis.
- Muito obrigada, capitão – disse-lhe com sinceridade. – Provar-lhe-ei a verdade. Se não o conseguir, eu própria me entregarei.
O homem ignorou-a.
- O seu navio partiu em direcção ao Sul. Se quiser poderá segui-lo. Pela manhã seguiremos para Norte. Se nos voltarmos a encontrar espero que não seja nas mesmas circunstâncias. – Levou a mão ao bolso e retirou uma pequena bússola já velha com um ponteiro em metal. Junto vinha uma pequena pena vermelha. – Penso que vá precisar disto, Pluma Escarlate.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Pluma Escarlate

Parte II

Mal se vira o Sol nascer. Um nevoeiro cerrado cobria a embarcação e tudo o que a rodeava. Não se via mais que um braço à frente da face. A única coisa que se ouvia era o casco a cortar as ondas que se abatiam sobre ele. Aquele era um ambiente traiçoeiro que os ludibriava.
- Capitã!
Alexandra olhou para o mastro principal, donde vinha o chamamento, apesar de não ver nada além da densa nébula.
- Sim, senhor Almiro?
- Aproximamo-nos de algo a pouca distância! – Gritou a voz do velhote, do vazio. – Outro navio, parece-me!
A capitã franziu as sobrancelhas. Por entre o nevoeiro não conseguiria descortinar se eram amigos ou inimigos. Não se poderiam arriscar a atacar um barco mercantil. No entanto, seria só mais um para um currículo que outros tinham forjado para eles… e podiam sempre recuar se fosse engano.
- Preparem-se para atacar! – Gritou para a sua tripulação. – Vamos abordar o navio e certificarmo-nos de que não são os homens do Marquês.
- Alexandra, isso é demasiado imprudente. Pode ser qualquer pessoa, pode mesmo ser a guarda do rei! – Alonso agarrou-lhe o braço, impedindo-a de avançar para a amurada.
- Mesmo que seja, conseguimos escapar-lhes uma vez. Podemos muito bem escapar outra. É uma questão de superioridade estratégica.
- E tens alguma estratégia? – A dúvida planava como uma ameaça feroz na voz de Alonso.
- Não, mas se não os atacarmos nós, há a forte probabilidade de serem eles a fazê-lo. E eu não quero cair, não agora que podemos estar tão perto do final.
- Que final? Do nosso final?!
Alexandra puxou o braço da mão de Alonso e afastou-se dele sem lhe responder. Não queria admitir que as suas perguntas a perturbavam.
Depressa os seus inimigos se deram a revelar. Um colosso pareceu materializar-se ao seu lado vindo de outro mundo. Pouco conseguia desvendar naquela semi-cegueira e os rostos dos marinheiros adversários eram-lhe vagos.
Por enquanto também não tinham atacado. Não sabia a razão. Estariam à espera que dessem eles o primeiro passo? Se assim era, assim o fariam.
Não hesitaram. Abordaram o outro navio de imediato e o combate começou. Alexandra ouviu armas a dispararem. Por entre aquele nevoeiro era uma loucura disparar-se uma arma! Podiam acertar na pessoa errada, num companheiro!
Desembainhou a espada afiada, mas a falta do seu brilho por entre a brancura impura do ar deu-lhe um arrepio. Considerava aquilo um muito mau prenúncio. Estariam os mares contra eles?
Ouviu algo a cortar o ar por detrás de si e virou-se rapidamente, erguendo a espada a tempo de se defender. O entrechoque do metal repercutiu-se no ar com hostilidade. Alexandra fitou a face do seu atacante, por sinal sua conhecida.
- Seja bem vinda, Capitã Vasconcelos. Tenho esperado ansiosamente por si – declarou o capitão Henrique com um sorriso sarcástico. – Demorou a chegar, mas mais vale tarde que nunca.
- É um prazer reencontrá-lo, monsieur – disse esta com uma pequena vénia trocista. – Sentia falta de um bom combate e da última vez penso que tenha ficado com algo que me pertence.
- E tem toda a razão, mademoiselle. Estimo ao saber que ainda se lembra – desferiu outro golpe ao dizer isto, fazendo Alexandra recuar por entre os homens que lutavam desenfreadamente. Pingos quentes de sangue voaram até ao seu rosto, vindos de algures. Não queria saber de quem eram. Sentia-se mutilada só de pensar que poderia pertencer a algum dos seus marujos. – E desta vez não levará a melhor, porque não desistiremos. O lugar dos criminosos é na forca.
- NÓS NÃO SOMOS CRIMINOSOS! – A sua fúria voltou a evadir-se de dentro de si, repentinamente, investindo contra o capitão sem pensar. – É a escória que vos mandou que pratica os crimes! É a escumalha daquele marquês que mata por ganância! É a ele que os espanhóis pagam para contratar corsários!
Enquanto dizia isto, a sua espada rasgava o ar, embatendo contra a lâmina da do capitão sem saber o que fazia. Estava a agir impulsivamente. Queria que ele acreditasse nas suas palavras, queria que se fizesse justiça.
Ao mesmo tempo que duelavam, os seus passos levaram-nos para uma inclinação. Estavam a subir para a proa.
Alexandra golpeava a espada do homem incansavelmente. Todavia, quando ergueu o braço para desferir outra estocada, uma incompreensível e imensa dor perpassou-lhe as costas, por entre as costelas, parecendo quase vinda do coração. Sentia-la, a lâmina pequena e aguçada de uma flecha dentro de si. Mas como fora possível acertarem-lhe tão precisamente?
Recuou, tentando ganhar forças para respirar, mas cada movimento que o seu peito fazia parecia-lhe insuportável. O capitão baixou a espada, estupefacto e incapaz de agir. Sentia-se confuso com aquela paragem brusca do combate.
Assim, Alexandra ganhou forças para fazer o que tinha de ser feito. A única forma digna de finalizar tudo aquilo.
De dentro de si soou um grito, não de dor, apesar do esforço lhe destroçar o corpo.
- Voltem ao Flecha Dourada, já! Saiam daqui!
Fincou a espada no chão para se aguentar em pé. Não sabia se a tinham escutado, no entanto não conseguia gritar novamente. O seu espírito começava a toldar-se. Nunca pensara que uma simples flecha pudesse ter tais consequências.
***
Alonso viu, impávido, os seus companheiros de mar, regressarem ao navio. Ele e mais uma dúzia tinham ficado no navio, atacando o inimigo com flechas, apesar de, por entre todo aquele nevoeiro, terem disparado poucas com receio de ferirem quem não devessem. Foram lançadas só as que tinham um alvo certo. Ele mesmo dera a ordem.
- Porque estão a regressar? – Perguntou a um marinheiro que acabara de cair ao seu lado e se levantava com rapidez.
- A capitã deu-nos essas ordens, e disse para nos pormos a andar. Eu estava ao pé dela, foi atingida por uma flecha, muito possivelmente no coração – respondeu o homem. Tinha um aspecto lastimoso, um dos braços possuía uma chaga aberta, donde escorria sangue, e não tão pouco assim.
- Não… isso não é possível – murmurou Alonso incrédulo e ao mesmo tempo chocado. Parecia não querer acreditar no que ouvia.
- Ela deu-nos uma ordem, e muitos de nós ouvimo-la. Partimos, já!
- Não a podemos deixar lá! Não…
O homem não o ouviu e afastou-se agarrado ao braço ferido. Poucos minutos depois estavam a afastar-se da nau da guarda. Alonso continuava perto da amurada a vê-la ficar cada vez mais distante. Do seu único olho derramava-se uma pequena e dissimulada lágrima. Por vezes o que estava certo era demasiado doloroso.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Peste



Não te sorri o olhar fosco
Esfolado em agulhas que te aguilhoam.
Não te sorri que nasceu morto,
Aborto de garras estendidas. Que te doam,
As mágoas da luz que a ele deste,
Quando a ti arranhar a negra peste.

Que o abortinho ri-se…
Ai a peste tem humor vítreo estilhaçado!
Rasga o ventre que o sustém e ri-se, ri-se,
Ri-se o cego aborto danado,
Vidro a vidro, vontade férrea e sabor
De sangue rubro e tua dor.

Então, rejeita-lo da corpórea mente, alma andante.
Rejeita-lo em forma de te rejeitares.
Que agora ele não ri, sorri a ti, seu amante,
Que o susténs sempre em ajeitares
Ternos, de dor mal contida.

Um brinde à peste que te alimenta, de putrefacta vida.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Acróstico II



P
or dias singrou esta ilusão,
Rompante a dentro que era viva.
Estridente o gralhar que dizia não,
Se não vista, era proscrita,
Tudo e nada, sem coração,
Ilusão, oh! Se era a dita,
Gosto amargo, veneno, santo pão,
Impar descoro, a desta magia,
Origem e pecado de perdição
(Que é essa tua fantasia).

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Pluma Escarlate

(Conto que escrevi há cerca de um ano, para participar no "concurso" Pulp Fiction à portuguesa, da SdE e como nada mais há a fazer com ele... aqui fica, para quem quiser ler)

Parte I

A nau navegava em alto mar, enquanto a sua bandeira se balanceava livremente pela brisa marítima. O seu fundo era negro e sobre ele repousava um símbolo branco, uma caveira. Era um barco pirata.
Pluma Escarlate, de verdadeiro nome Alexandra Vasconcelos, caminhou pelo convés do seu navio, Flecha Dourada, observando os inimigos que se mantinham a uma distância considerável. Os canhões estavam carregados e prontos a disparar. Afundá-los-iam sem piedade. Ninguém mais tinha o direito de correr aquele mar com intuito de roubar outros barcos, muito menos os malditos corsários do Marquês de Tomar.
- Alonso! – Gritou alto, num tom de comando, sem tirar os olhos do navio que se encontrava a menos de duas milhas deles.
Um homem de paleta e uma cicatriz que se derramava pelo lado esquerdo da face aproximou-se com passos rápidos. O seu único olho era de um verde forte e perscrutou a sua capitã meditativamente.
- O que pretendes fazer? – Perguntou, desviando o olhar para o navio longínquo.
- O que achas? O traidor do Marquês há-de parar de mandar barcos para atacarem as caravelas que partem de Lisboa. Malditos espanhóis… – rosnou, com um esgar de raiva.
O Marquês de Tomar era um homem rico que vivia nos arredores de Sines. Conhecido por ser perigoso, um inimigo que ninguém gostaria de ganhar. Todavia, Alexandra repugnava-se com o que ele fazia ao seu próprio país, a mando de Espanha. E antes dela se repugnar, repugnara-se o seu pai, o Conde Vasconcelos. Fora tal a sua revolta que acabara na forca, e as suas terras confiscadas.
- Quais são as ordens?
- Aproximem-se dele. E quando estivermos suficientemente perto, abram fogo contra aquela escória.
- Sim senhora, vou passar as ordens – declarou Alonso, afastando-se.
Alexandra virou também as costas ao navio pirata e dirigiu-se ao seu camarote com passos largos e decididos. Era uma mulher ainda jovem e bonita. Os poucos que sabiam da sua dedicação ao mar e da sua guerra aberta contra o marquês censuravam-na e chamavam-lhe insana. Mas ela pouco ou nada se importava, aquelas palavras só a faziam sorrir e honrar-se.
A sua alcunha nos altos mares era Pluma Escarlate, pela pena vermelha que trazia presa no chapéu negro tal como todo o seu traje. Escolhera-o em honra de seu pai, pois ele fora uma ave a quem injustamente roubaram a liberdade. A sua espada, outrora também dele, permanecia presa à cintura na sua devida bainha, esperando sangue. E talvez o tivesse mais cedo do que esperava.
O seu camarote era um espaço amplo e limpo, com poucos objectos pessoais. Dessa forma dirigiu-se directamente ao baú, aos pés da cama, que abriu com cuidado, dando a mostrar algumas roupas que já não usava: vestidos. Revolveu-os e retirou do seu interior uma caixa onde estavam guardadas duas pistolas, as respectivas munições e um saquinho de pólvora. Carregou as armas e prendeu-as no cinto. Depois olhou para um grande retrato que se encontrava encostado a uma das paredes de madeira do camarote. Nele mostrava-se um homem de espada na mão e olhar decidido, de aparência justa e corajosa.
Esta é por ti, pai. Mais cedo ou mais tarde, irão ceder, pensou. Fez uma pequena vénia ao quadro e saiu.
- Senhor Almiro! O que me diz dos nossos inimigos? – Perguntou, lançando um olhar à gávea do mastro principal onde se encontrava um homem já com certa idade, um dos mais responsáveis e fiéis marinheiros.
- É uma nau portuguesa!
Alexandra franziu as sobrancelhas intrigada. Normalmente as naus dos corsários eram de fabrico espanhol. Algo de estranho se passava ali. O que andariam a tramar?
As milhas que os separavam depressa se aproximaram, colapsando-se em poucos metros. E isso preocupou-a ainda mais. O rosto dos marinheiros da nau inimiga não eram assustados ou desorientados, não corriam de um lado para o outro a precaver-se contra o assalto de outro barco pirata. Não... esperavam o Flecha Dourada de armas apostas, armas invulgares para simples corsários.
Quando o primeiro canhão disparou contra a nau e fez o seu barco estremecer, Alexandra percebeu o que se passava. Era uma armadilha!
Os seus inimigos posicionaram as espingardas e começaram a disparar contra eles, enquanto de ambos os barcos voavam tiros de canhão certeiros e destruidores.
- Alonso!!! Temos que sair daqui, imediatamente! – Gritou, correndo em direcção à popa. No entanto insurgia um problema. No meio da confusão, ninguém ouvia a sua voz.
Praguejou alto. Aquela escumalha estava a desfazer-lhe o navio! Não tinham outra saída sem ser combater. E dentro do próprio navio estariam a perder contra as espingardas dos inimigos. Tinham que tentar algo mais ousado.
- Abordagem!!!
Vários olharam para a capitã quando a viram a saltar para a amurada com uma das pistolas na mão esquerda, enquanto que a outra segurava uma corda áspera. Muitos imitaram-na de imediato.
Com o devido balanço, voaram de um barco para o outro, aterrando em vários pontos da nau. Alexandra encontrava-se perto do leme, onde a esperavam vários marinheiros que, agora de perto, não lhe pareciam minimamente corsários. Estavam demasiado organizados. E não havia muitas mais hipóteses.
Subitamente apeteceu-lhe morder o chapéu de raiva ao perceber no tamanho da armadilha em que tinham caído. Estavam a atacar um barco da guarda real. Maldito fosse o Marquês! Aquela peste suína nojenta...
Fez pontaria e disparou um tiro contra o homem que estava mais perto de si e que ficara momentaneamente aparvalhado ao ver que o aclamado Pluma Escarlate era uma mulher. O homem caiu para trás com o impulso, levando a mão ao ombro direito, agora ensanguentado.
- Capitão... – gemeu, enquanto as dores lancinantes se propagavam pelo braço que segurava a espada.
Ao ouvir estas palavras Alexandra olhou em volta e disparou outro tiro, mas o alvo esquivou-se, desembainhando a espada e atacando-a com rapidez. Com aquela proximidade as espingardas não eram as armas mais propícias.
Recuou vários passos para evitar que a lâmina a golpeasse e imitou-o, aparando o último golpe com força.
Ambos se fitaram. O seu opositor não deveria ter mais de trinta anos. Pouco mais velho que ela, mas bastante audaz na esgrima. Sorria-lhe, mas permanecia cauteloso, agora que também Alexandra o atacara.
- Capitão Henrique, quais são as suas ordens? – Inquiriu um dos marinheiros, ou talvez fosse mais correcto chamar-lhe soldado.
- Capturem-nos! O Marquês quer-los vivos, incluindo o seu capitão. – Os seus olhos não se afastaram de Alexandra nem por um segundo. – Mas desse trato eu.
Com esta ordem o soldado dirigiu-se para o convés desembainhando também a sua espada, deixando-os a defrontarem-se.
- Cometeu um erro grave com este ataque – declarou, sem desmanchar o seu sorriso algures de triunfo, algures de entusiasmo e também algures de certo receio. Estava a pisar um terreno pouco seguro. Nunca lutara com uma mulher, mas já ouvira falar de quem o fizesse, e os resultados não tinham sido dos melhores. Era muito mais perigoso defrontar uma mulher com uma arma na mão do que uma dúzia de soldados preparados para a guerra. E quando essas mulheres têm preparação suficiente para defrontar um homem treinado num mano a mano... o melhor seria precaver-se.
- Não preciso que mo diga, monsieur. Mas acautele-se, porque ainda não tem a vitória nas mãos.
Dito isto partiu num ataque rápido e ágil. Estava em vantagem pois o homem pouco estava habituado a lutar sobre uma plataforma instável. O mar estava a seu favor.
Fê-lo recuar até à amurada com sucessivos e fortes golpes que tinham uma única finalidade: desarmá-lo. Não o queria matar, pois isso sim, era declarar guerra aberta a Portugal. E se isso acontecesse, seria o seu fim e o da tripulação. Assim como da sua própria pátria.
Mesmo assim, tinha que admitir que o homem era forte e tenaz. Estava a deixá-la cansada e isso raramente acontecia.
Por fim, com dois últimos golpes, o primeiro vindo da direita e o segundo vindo de baixo, a espada do capitão saltou-lhe da mão e caiu ao mar, desamparada e sem retorno.
- Agora, ordene aos seus homens para que parem de lutar e se rendam – declarou Alexandra num tom autoritário.
- E porque faria isso? – Apesar de desarmado, o capitão da guarda ainda a desafiava.
- Para o bem de todos eles, não quero ver ninguém morto. Se não o fizer, a minha piedade para com eles deixará de existir. E se vir bem, mesmo que os seus homens estejam melhor armados, os meus têm uma preparação que ultrapassa qualquer guarda. Estamos em vantagem. – Enquanto dizia isto a sua espada não se afastou do pescoço do homem, e um simples olhar bastou para confirmar as suas palavras e a realidade.
Muitos dos soldados encontravam-se caídos no convés, não se sabia se mortos ou vivos. Alexandra esperava que maior parte estivesse vivo para o bem de todos.
Após alguns segundos de expectativa, em que o capitão pesou os prós e os contras, a resposta acabou por chegar.
- Como quiser.
- Foi uma escolha sábia da sua parte, capitão Henrique – frisou as duas últimas palavras, denotando o conhecimento do seu nome. Afastou-se alguns passos sem deixar de lhe apontar a ponta afiada da espada. – Agora, dê a ordem.
E ele assim fez. Ao fim de cinco minutos as lutas tinham cessado, as armas dos soldados jaziam abandonadas no convés, e muitos deles olhavam ultrajados para o seu capitão que fora inevitavelmente derrotado por uma mulher pirata.
- Senhores! Regressem ao vosso navio e preparem-se para partir! – Falou Pluma Escarlate para a sua tripulação, de forma pouco alegre. Aquela não fora a vitória desejada.
Esperou que maior parte dos seus marinheiros tivesse já embarcado antes de embainhar a espada e se afastar do capitão da guarda real.
- Pluma Escarlate! – Chamou este aquando Alexandra recebia a corda que a faria saltar para o outro navio. – Não me diz pelo menos o seu nome?
- O que lhe interessa essa informação? – Não se voltou para ele quando fez esta pergunta.
- Penso que seja justo, também sabe o meu – fez notar.
- Muito bem, capitão Henrique. É bonito ouvir os outros falarem de justiça quando não a praticam – disse ironicamente, olhando para o homem de soslaio. – Mas o meu nome é Alexandra Vasconcelos. Já agora esclareça-me uma suspeita, quem pediu a El-Rei D. João III que vos enviasse?
- O Marquês de Tomar. – Era uma resposta simples, e mais que óbvia e o homem não lhe pedira sequer uma explicação pela questão.
Lançou-se de um barco para o outro, acabando por ser ajudada a subir para dentro do Flecha Dourada por Alonso que trazia um arco e uma aljava presos às costas.
Do outro lado, o capitão Henrique segurava algo que lhe parecia vagamente vermelho e além disso, familiar. A sua mão retirou o chapéu da cabeça, mostrando um lenço negro que lhe prendia os cabelos compridos. A pluma tinha sido decepada! Premiu os lábios, contrariada com aquele incidente. A espada do homem tinha sido mais rápida do que dera a parecer.
Por fim, mirou a nau e o seu capitão antes de se retirar para o camarote. Mal sabia ela que aquela não seria a última vez que o veria.
Nos dias que se seguiram navegaram até França. Precisavam de se reabastecer, e havia feridos que necessitavam de um tratamento mais cuidadoso. As balas dos guardas portugueses tinham crivado as suas mazelas.
Durante a madrugada de uma dessas noites de viagem, Alonso foi encontrar a sua capitã quase a destruir a amurada com murros de raiva. Não lhe agradava aquele estado de espírito tão tempestuoso.
- Alexandra, o que se passa? – Quis saber, pousando-lhe a mão no ombro. O seu único olho brilhava intensamente, rasgando a noite estrelada como um punhal. Um fenómeno pouco natural e de certa forma assustador para maior parte das pessoas. E apesar de ter só um olho, era o que melhor via de entre todos.
- Nada, estou só um pouco ansiosa – resmungou, fitando o mar na sua negritude calma. A Lua erguia-se no alto, em quarto minguante, marejando-os com um pouco da sua luz.
- Claro que sim!
Alexandra praguejou para si por entre os dentes.
- A nossa última incursão fez demasiados feridos – murmurou.
- Não podíamos ter imaginado que era uma emboscada...
- Mas podíamos ter suspeitado! – Gritou a capitã do navio, furiosa. A sua face era marcada por um esgar de raiva. – Podíamos ter recuado, podíamos... AHHH!!
Um novo e violento murro voltou a abater-se sobre as bordas do navio.
Alonso encolheu-se ao ver aquela demonstração de fúria. Alexandra precisava de ser apaziguada. Pousou a sua mão sobre a dela, compreensivamente.
- Alexandra, tu não és Deus. Não podes adivinhar, nem guiar o destino dos outros. Nem sempre podes navegar e sair vitoriosa. O mundo está contra os justos, está contra ti, dificultando-te a tua missão, ou talvez, quem sabe, auxiliando-te de uma forma rebuscada – levou aos lábios a mão da sua capitã e depositou-lhe um pequeno beijo. – Esta missão nem deveria ser tua. Olho para as tuas mãos e vejo a delicadeza de uma flor. Este mundo não é o teu. Não deverias continuar no mar.
- Vou acabar o que comecei – declarou friamente, tirando bruscamente a sua mão de entre a do amigo. Conheciam-se desde crianças, tinham um ano de diferença. Ele perdera o olho no dia em que tinham invadido a casa do Conde Vasconcelos para o prender. Ajudara-a a fugir, impedindo que fosse também julgada e morta.
- O Marquês não irá parar! Mandou uma nau contra nós no outro dia. Daqui a umas semanas mandará uma armada! Estás a condenar-nos à morte! – Finalmente os seus verdadeiros pensamentos vieram à tona.
- Eu não obrigo ninguém a ficar. Se ele os mandar, deixá-los vir. Irei ao fundo com o navio do meu pai, é a única e real memória que me sobra e ficarei com ela até ao fim. Se morrer antes disso, são livres de ir à vossa vida. Como já disse, não vos obrigo a nada.
Voltou-lhe as costas imponentemente, com a raiva a fervilhar no seu interior. Nesse momento tinha um único destino: subir à gávea e ali passar a noite a meditar no seu próximo passo.
Ao fim de quinze dias regressaram à costa portuguesa. Na sua ausência uma outra nau tinha sido atacada e saqueada pelos corsários espanhóis. Não tinham deixado um único sobrevivente para contar a história, logo os préstimos indesejáveis dos seus actos seriam oferecidos ao Flecha Dourada e a toda a sua tripulação. Ou seja, as culpas recairiam sobre si e os seus companheiros.
Depois de muito pensar, Alexandra decidira-se. Daria mais uma oportunidade ao seu navio de enfrentar e derrotar de vez o Marquês de Tomar. Se isso não acontecesse, tomaria medidas mais drásticas, apesar disso lhe poder custar a vida.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Naufrágio


Ninguém sabe e ninguém viu,
O barco afundar-se no mar alto
Que de lábios arreganhados lhe sorriu.
Ninguém soube que foi ele,
De caninos aguçados escorrendo o sangue
Do mar, que os comeu e devorou,
De papo sempre vazio,
Aquele que mastigou e cuspiu
Os destroços que à praia do mar,
Nos vagalhões que sopram corredios,
Se foram da morte aportar.

Recolheram, então, os tesouros,
O ouro que brilhava e pingava sangue,
Nosso ardor e vida árdua. Azar!
Que recolheram, levaram, venderam,
Moedas compradas ao mundo
Dado de ninguém, que ergueram,
Memórias de estátua ao profundo,
Horizonte distante – além morro por amar.
Aquele por quem o barco foi devorado,
Deglutido, escorraçado… oh! Naufragado!
Nos confins negros do mar.

sábado, 11 de julho de 2009

A Gárgula


A chama da candeia tremeluzia por entre a densa escuridão, enquanto se aproximava do altar fúnebre da igreja. Por qualquer razão desconhecida, aquele local encobria-se de escuridão. Nenhuma tocha acesa o alumiava e os vitrais não permitiam a passagem do inexistente luar.

Subitamente, escutou um estalar ruidoso, provindo de um dos cantos da igreja, e estacou, com mais medo do que um ladrão profissional deveria ter. A mão procurou o bolso das calças, retirando um canivete que se apressou a abrir. Avançou na direcção do barulho, de arma empunhada, a candeia revelando, metro a metro, o caminho à sua frente. Encontrou somente uma parede e uma recurvada estátua de três chifres e garras tão afiadas quanto um felino selvagem. Não percebia como permitiam que tal horror permanecesse dentro da igreja, competindo com a pacificidade dos santos.

Encolheu os ombros e voltou costas à gárgula, continuando até ao destino, onde se encontravam expostos os pertences em ouro e as estatuetas mais preciosas. Um novo estalar fez-se escutar, mas desta vez ignorou-o. Não deveria passar de uma ratazana esfomeada, explorando a igreja em busca de migalhas… Novo ruído de pedra contra pedra, mas baixo, muito baixo. Estendeu a mão para uma peça que representava a Virgem Maria. Porém, algo o deteve. Um bafo quente tocou-lhe o pescoço e o ladrão voltou-se, de arma em punho, pronto para cortar a garganta ao padre que interrompera o seu saqueio. O canivete deslizou sobre a pedra, soltando faíscas, mas depressa caiu ao chão. Dois olhos rubros fitavam-no da face pétrea da gárgula que vira ao canto da igreja, tão morta quanto qualquer pedra poderia estar. Mas aquela não estava e os lábios arreganhavam-se, mostrando as presas assassinas. Não conseguiu gritar, a voz estrangulando-se-lhe na garganta. O coração falhou e ele morreu do mais puro terror.

Texto para um passatempo do Correio do Fantástico

sábado, 4 de julho de 2009

O Teu Mundo



Quando ergueste a cabeça da almofada,
Viste um só mundo em teu redor.
Um mundo de cores efervescentes,
Dolorido de tons árduos d’aberrantes.
E quiseste novamente adormecer.

Mas o ruído não o permitiu.
O zumbido férreo que ameaçava picar
A carne tenra da tua mente, perseguia-te.
E obrigou-te a correr, correr deitado
Para além longe do mundo pintado,
Com cores de ninguém.

Que são aberrações e quem as quer?
Quiseste tu, que a escolha não te escolheu.
Restou-te a sobra de um mundo de sonhos,
A miríade de gosto amargo que é viver
As migalhas bolorentas do ser.

Mísero subconsciente de cerne seco
Em humidade que se destila, valeta abaixo,
Corredio de vadio, rédea solta. E ele persegue-te.
É teu. É sangue e tumor lívido de terra queimada.
Cabe-te a ti refreá-la. Cabe-te a ti cultivá-la.
Que esse mundo é só teu.

(a ouvir The Wizard's Last Rhymes, Rhapsody)

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Passado por Existir

Nomeio-te dono de um passado que nunca existiu.
Podes fazer com ele o que fiz contigo,
Chamar-lhe o que não pensas, por puro egoísmo,
Nota alta de barítono enrouquecido
E que nunca soube cantar.

Vá, chama-o, que te quero ouvir
Clamar leda dor pétrea por esse passado vazio.
Que almeja ele pedaços de ti que o consumam
E conspícuos pontos que o constituam,
Como eu me constituí em ti.

Não lhe negues esse pouco de ti que ainda resta.
Não lhe negues, que de nada te serve ser vivo ou morto,
Pedaço intransitável de carne que se decompõe.
Sê dele, do passado que nunca existiu.
E sê meu jantar por digerir.

Não. Não ouviste mal.
A letífica febre que se destila, via Inferno, arqueja
Na avidez árida dos seus desertos, em mim.
Por isso chama-o. Chama o passado por existir.
Que tu te constituis nele. E eu me constituo em ti.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Liriana

As flores que cantam, alegres, ao raiar do Sol,
Têm perfume e fragor de mel aquecido.
Porém, flores que dançam à suavidade do luar,
De fria vida bailam álgida doçura, comigo,
Diluem-se no místico da brisa branda,
E são deusas minhas - Efémeras donzelas do destino.

Well... as efémeras donzelas do destino são umas florzinhas amorosas, e uma dessas flores fez questão de me dar uma prenda de anos via "messenger". Os desenhos ainda não estão acabados, mas eu adorei-os! Por isso, e para compensar o tamanho minorca daquele poema dedicado a todos os meus chers amis que se lembraram de me dar os parabéns (ou foram lembrados à força *cof cof*) vou expor aqui os agora meus desenhos, representando a personagem Liriana, tão amorosamente delineada pela Catarina ^^






sexta-feira, 12 de junho de 2009

Um Beijo à Alma


Um beijo. E serás minha
Rosa doce de paladar campestre.
Um toque. E deslizarás, suave,
Sobre o peito que te anseia,
Tão vivo e vão de palpitante,
Do não querer que te apartes.
Mas o canto respira amor,
E chama. Como te chama ele!
Deixas-te ir. Desvaneces-te,
Nas palavras quase quentes
Que te sussurro. E adormeces,
Num beijo de engano à alma.

in «O Príncipe do Mar do Interior»,
Capítulo IV - Como Adormecer uma Alma

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Lua



Era uma vez o sol-posto
E o crepúsculo que te ofusca.
Hordas deles que te espreitam
Espraiadas nos véus foscos.
Folgo por saber tão teus,
Dos ditos percursos que percorres
Pelas vastidões do céu.

E que ao se pôr, nasceu,
De ponto a ponta, rosa crescente.
Floresceu. Filho da aurora,
Corola ardente, fogo posto,
Que o apagas no final,
Fria Deusa evanescente,
Nívea nua, Deusa Lua.

Que a grácil noite é tua.
A voz que canta, em sussurros,
Sonhos de divago distante.
Permanece no luar, o teu retrato,
Indistinto intento de semente fértil,
Implantada na nova noite,
E nascida ao romper do dia.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Sarhyrt (Felino)


Uranien. Saê uraniê?
Durnin se darar uran.

Ghyrien, ceri saê ê nelorhnien,
Nimani sarhyrt sase ceveron,
Kuoron se frharien
In merigor wueyr
Uthil riern uthil, myrgalash…
Liel in alanien vorghianar

Escutem. Não escutam?
Impossível de imprescindível escutar.
Contemplem, que não o vêem,
Vivo felino das brumas,
Lâminas de garras
E presas fantasmas
Passo ante passo, predador…
Murmúrio e encanto mortal.


(Imagem desenhada pela Catarina (a minha prenda de anos adiantada hehe) representando Landar, uma das personagens de uma história que escrevi.)

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Dança!



Um passo e revirou.
As mãos delicadas de seda
Branca e púrpura
Erguiam as pontas do vestido.
Que se baixou e saltou,
Ritmo ao toque do violino.
Vivo e dançou.
Sorriso amplo, que alegria!
Um passo em frente, um passo atrás,
E novo revirar, bailar
Em pontas de pés ferventes,
Uma vénia que recomeça
Que não pára a alma
Esvoaçante.
Rodopia, cabelo solto d’ouro
Corrente viva,
Descalça pelo som.
E canta, oiçam-na cantar!
Rosa acesa do Ocidente
Incendiado. Fogo!
Que arde em fulgor,
Extinta estrela do povo.

terça-feira, 2 de junho de 2009

História Sem Fim


Uma vez, contei uma história a uma criança. Começava com um princípio mas não tinha fim. Contei vezes e vezes sem conta, que me repeti, dia após dia, ano após ano, infinito após infinito, no entanto não lhe discerni o fim. E não o saber doía, que a dúvida carcome e belisca, corrói lenta da fome de devorar. As cordas apertam, as grilhetas ferem e a curiosidade goteja monótona segundo a segundo, gritando muda ao mundo escondido. Alaga-se, mas é contínuo o gotejar, que não se afoga o ser sem o saber, apesar de não respirar. Ora, não é vivo nem morto. Poderei chamar-lhe imortal? Se não pode morrer não está vivo e se não está vivo não pode morrer. Até um dia esta história acabar. Porém, era uma vez uma história sem fim… E por ela, serei imortal, no profundo por descobrir.